Eleni Myrivili: “Percebeu-se finalmente que o calor extremo afecta as economias”

Eleita pela Nature uma das dez pessoas que ajudaram a moldar a ciência em 2023, Eleni Myrivili defende que é agora, no Inverno, que as cidades devem preparar-se para o calor extremo do Verão.

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Eleni Myrivili é directora global para o calor da agência das Nações Unidas para a habitação e as cidades (UN Habitat) e do Centro Arsht-Rock para a Resiliência Bennett Raglin/Getty Images for The New York Times
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A ex-política grega Eleni Myrivili foi eleita pela revista Nature uma das dez pessoas que ajudaram a moldar a ciência em 2023. A prestigiada publicação científica destaca, além do percurso singular de Myrivili, o trabalho que desenvolve na agência das Nações Unidas para a habitação e as cidades (UN Habitat), onde ocupa o cargo de directora global para o calor.

Lenio (como gosta de ser tratada) começou a carreira como antropóloga cultural, concluiu um doutoramento na Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos, virou-se para a política em 2007, foi vice-presidente para a resiliência climática (2014-2019) da Câmara de Atenas, na Grécia, e, por fim, abraçou uma luta global para tornar as cidades espaços mais habitáveis e resilientes ao calor extremo.

Nesta entrevista ao PÚBLICO, por videoconferência, Eleni Myrivili detalha os três passos necessários para tornar as cidades mais resilientes ao calor: a sensibilização, a preparação e o redesenho urbano. Lenio quer encorajar decisores a pensar nas vulnerabilidades do sistema urbano, redesenhando-o e dotando-o de soluções baseadas na natureza, para que as cidades se tornem espaços onde as pessoas possam proteger-se das altas temperaturas e não morrer de calor.

Depois de um ano pejado de recordes indesejáveis, Lenio acredita que se percebeu “finalmente que o calor extremo afecta as economias”. E defende que é agora, no Inverno, que as cidades devem preparar-se para o próximo Verão, evitando assim mortes desnecessárias.

O ano de 2023 foi o mais quente a nível global desde que há registo e o segundo mais quente na Europa. Apesar de estarmos em pleno Inverno, este é o momento certo para nos prepararmos para mais um Verão escaldante?
Sim, definitivamente. As acções das cidades para lidar com o calor centram-se em três eixos: sensibilização, preparação e redesenho urbano. A preparação pode ter lugar na Primavera, um pouco antes do Verão, quando as pessoas têm mais cabeça para pensar nisso. Esta preparação é a única forma de garantir que temos as medidas necessárias, que estamos prontos quando o calor extremo chega. E esta preparação deve começar agora.

O que deve ser feito na preparação?
É a parte mais importante. Está directamente ligada a garantir que temos, por exemplo, locais refrigerados e que são apelativos para atrair as pessoas que não têm ar condicionado. Também é nesta altura que temos de começar a preparar a comunicação, ou seja, nas mensagens diferentes que terão de ser transmitidas às populações mais vulneráveis. Temos ainda de pensar em backups não só dos sistemas de energia [que tendem a ficar sobrecarregados com o uso intensivo de aparelhos de refrigeração], mas também nas cadeias logísticas de abastecimento de alimentos, água e medicamentos. Os hospitais também têm de estar preparados com mais camas, e com conhecimento médico adequado, para receber mais pessoas durante ondas de calor.

Tudo isso deve começar a ser feito já?
Sim, tudo isso tem de começar a ser feito agora, especialmente se tivermos uma onda de calor em Maio ou Junho, que é no início da temporada. Estas podem ser as vagas de calor mais mortais, porque os nossos corpos ainda não estão adaptados às altas temperaturas. Também precisamos de olhar para questões de biodiversidade, e pensar em sistemas alternativos de irrigação para parques e jardins. E [garantir água e sombra a] animais sem dono.

Essa preparação diz respeito ao curto prazo. Que sistemas de arrefecimento devem ser pensados a longo prazo?
Essas medidas já fazem parte do terceiro (e último) eixo, que é o redesenho da cidade. Acabam por ser os mais importantes, porque são aqueles que tornam as zonas urbanas mais habitáveis e menos mortais do que são hoje. Temos de pensar, antes de mais, em criar zonas de sombreamento e em como os ventos podem atravessar a nossa cidade. Estas duas coisas são mesmo muito importantes. E a grande parte do sombreamento e do vento que atravessa a cidade têm que ver com a natureza.

Pode explicar melhor?
O primeiro passo é pensar onde é possível criar sombras com a ajuda de árvores. Além da sombra, elas oferecem refrescamento. Na evapotranspiração, há uma redução das temperaturas pela evaporação da água que sai das folhas. A sensação de conforto que obtemos debaixo de uma árvore é muito maior. É muito mais forte do que a sensação que temos sob qualquer outro tipo de dispositivo de sombreamento. Porém, a verdade é que qualquer tipo de sombreamento é extremamente importante para o conforto humano numa cidade. Então, temos de ter soluções para as áreas onde não podemos ter árvores para sombrear, temos de pensar nas sombras de forma muito mais activa. E também temos de trazer água para a superfície, criando canais e outros sistemas de refrescamento urbano.

Fez uma apresentação Ted Talk, em 2022, na qual sugere que as pessoas não estão suficientemente preocupadas com o calor, apesar de este “matar silenciosamente”. Porque acha que a sociedade tem este comportamento?
No meu entendimento, isto está ligado ao facto de o calor ser invisível. É muito difícil para nós lidar com ameaças que não são visíveis. Quando há uma cheia, vemos a água a subir, os carros a flutuar, as casas submersas, pessoas a tentar fugir de barco. Tudo isso é visualmente muito forte e os resultados são imediatos. Com o calor, não vemos isso a acontecer logo. Muitos meses depois, ouvimos falar de uma estatística do número de pessoas que morreram de calor, e as pessoas já não pensam mais nisso. O calor não mata per se, o calor muitas vezes amplifica outros problemas de saúde. Pessoas morrem porque têm questões cardiovasculares, diabetes, são poucos os casos de morte por golpes de calor. Há ainda um aspecto político importante: o calor não destrói directamente o património.

E mesmo em termos de seguros, imagino que seja difícil ser recompensado por danos causados pelo calor.
Sim, aquilo que o calor destrói são sobretudo células vivas, organismos. Nos últimos dois ou três anos, maior atenção tem sido dada ao calor. Percebeu-se finalmente que o calor afecta as economias. Temperaturas extremas implicam quebras na produtividade, acidentes de trabalho, perturbações na cadeia de valor. Os níveis dos rios descem, por exemplo, e isso prejudica a navegabilidade. Em 2022, houve dificuldade no transporte de mercadorias na Europa por causa disso. As pessoas estão a começar a entender os aspectos multifacetados do calor extremo, estão finalmente a acordar para isso.

À medida que apostamos na preparação e no redesenho das cidades, como lidar com a questão da desigualdade? Nem todos teremos o mesmo acesso a essas respostas.
As pessoas que são socioeconomicamente mais vulneráveis ​​são as que estão mais expostas ao calor, e também as que correm mais perigo com o calor. Esta é uma questão de equidade e democracia, e um problema que fica muito claro quando olhamos para uma cidade, um país ou um continente. Portanto, precisamos de ser muito corajosos e pôr em prática leis que protejam estas pessoas do calor. Na Europa, podemos fazê-lo. E isto é incrível, nós temos dados para isso.

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Eleni Myrivili foi eleita pela revista científica Nature uma das dez pessoas que ajudaram a moldar a ciência em 2023 Arsht-Rock Resilience Center/ DR

Mas noutros países, onde há uma grande parte da economia que é informal, é um problema muito complicado. Há muitas pessoas a trabalhar em condições precárias e sem regulação. Além disso, milhões de pessoas vivem em assentamentos informais, onde as condições dentro desses espaços envolvem temperaturas absolutamente desumanas. Temos de entender que esse é um tipo real de problema que existe, mas é global e difícil, e temos de lidar com ele através de acordos intergovernamentais e das Nações Unidas. O Fundo de Perdas e Danos, por exemplo, foi assinado – e, apesar de ser pouco dinheiro, é um passo importante. Se decidirmos não olhar para o quadro geral, temos de olhar para as nossas próprias cidades. E a primeira coisa que temos de fazer é identificar quais são as populações que estão mais vulneráveis ​​e expostas.

Peguemos então no exemplo de Atenas.
Temos 19% da população em Atenas com mais de 60 anos. Isto é muito específico de Atenas. A maioria das cidades não tem uma percentagem tão elevada de população idosa, mas para nós esta é a nossa principal vulnerabilidade. Atenas não tem muita indústria, há alguma construção, mas não necessariamente tanto no centro da cidade.

Cada cidade tem as suas próprias exposições e vulnerabilidades. Temos de descobrir onde elas estão, quais são os bairros que não têm infra-estruturas, que têm pobreza energética, que não têm sombreamento, que não têm parques. Temos de ver onde se concentram as populações imigrantes, que geralmente vivem em condições mais vulneráveis.

Outra coisa: onde estão as crianças? Onde brincam? Na cidade, este é um grupo particularmente vulnerável. Porque não têm muita noção do calor e brincam até cair para o lado. Temos sido informados pelos pediatras de que as crianças são transportadas quase num estado de insolação, exaustão pelo calor. E isto é muito perigoso. Em resumo, cada cidade tem de perceber onde está a vulnerabilidade.

Além dos três passos – sensibilizar, preparar e redesenhar –, o que mais pode ser feito?
Nunca conseguiremos lidar com estas situações se tivermos períodos muito longos de calor e, ao mesmo tempo, se estivermos a enfrentar incêndios florestais e inundações. Então, na preparação, há uma coisa crucial: [reduzir a queima de] combustíveis fósseis. Temos de investir na mitigação – e por vezes sinto que não enfatizo suficientemente este aspecto. O ano de 2023 foi o mais quente de que há registo. Se não quisermos viver com esse tipo de temperaturas, temos de realmente parar de usar combustíveis fósseis e impedir o desastre.

Fala-se na deslocalização de pessoas que vivem em locais que, no futuro, podem ficar submersos pelas águas do mar. Já se considerou também mudar comunidades por causa do calor extremo?
Não.

Não faz sentido?
Faz. É apenas uma conversa difícil que ninguém quer ter. Mesmo em comunidades em risco de enfrentar a subida do nível do mar ou inundações… Ninguém quer falar sobre a deslocalização. Mudar é um tabu porque ninguém quer deixar as próprias casas. Creio que é essencialmente um sentido de pertença. É mesmo muito duro deixar para trás os locais onde vivemos, e para os quais vivemos.