Monte Palace, ruína em São Miguel: O homem adormece, a obra pára

O leitor Rafael Vieira guia a visita à ruína do Monte Palace, em São Miguel, Açores: “um pagode cinzento sujo de betão descarnado, um vasto corpo adormecido de um hotel abandonado há décadas”.

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Hotel Monte Palace, hoje em dia fantasmagórico Rafael Vieira
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Chega-se pelas dobras da estrada até à crista do monte, com um miradouro debruçado sobre a orla sul da ampla Caldeira das Sete Cidades, lado ocidental da ilha de São Miguel, Açores. Este avesso de vulcão não é tacteado por lava há pelo menos milénio e meio na história dos homens. A subida até ao topo é abraçada pela densa folhagem das criptomérias, copas que vão abrindo gradualmente até que desaparecem e permitem a vista total desimpedida, num dia de sorte com as nuvens e a neblina, para um lado e para o outro da ilha.

Do lado direito oferece-se à vista a Caldeira e as suas lagoas, de colorida mitologia. À esquerda, o oceano agiganta-se a perder de vista. Água, terra, floresta e ar, tudo aquilo que faz sentido a impregnar o horizonte, em pulsões de verde vivo numa vasta aguada de azuis. Este local chama-se Miradouro da Vista do Rei, o que é acertado, pela sua vista privilegiada. De charneira a toda esta paisagem contemplativa, a uns escassos metros do precipício e bordejado pela estrada, repousam as ruínas do Monte Palace, um pagode cinzento sujo de betão descarnado, um vasto corpo adormecido de um hotel abandonado há décadas.

O Hotel Monte Palace foi criado como promessa de luxo, cinco estrelas dependuradas, 88 grandes quartos e suítes, mordomias devidas e a bem pagar, complementado com restaurantes, discoteca, salas de conferência, café, spa e uns acepipes mais. Foi construído a par com o Hotel Bahia Palace, este em Água d'Alto, na face sul da ilha. O Monte Palace foi inaugurado em 1989 e fechou por falta de hóspedes no espaço de apenas ano e meio, e o que sobrou foi este grande edifício tomado pela natureza e em diálogo constante com as intempéries, um corpo esventrado de metal e betão, restos de uma vida breve.

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Monte Palace em ruína Rafael Vieira

Os dois hotéis foram criados fora de tempo, numa altura em que os Açores estavam ainda fora da atenção turística internacional que despontaria décadas depois. Se o Bahia Palace renasceu, já o Monte Palace permanece ruína, cenário apocalíptico que é a representação perfeita do lento esboroar das coisas. Este é o local urbex menos urbex de Portugal, urbex ma non troppo, o segredo mais mal guardado da ilha, uma ruína urbana que faz parte do roteiro turístico oral.

Numa das paredes exteriores, visível a quem chega, uma obra de ±MaisMenos± grita: Sous la ruine, L’île. Debaixo da ruína, a ilha. Por dentro, caminhando por entre as sombras de muitos outros turistas e de espectros do passado, rumoreja o vento pelos vastos corredores, pelas escadas que ligam os pisos, pelo grande precipício interior, pelos antigos quartos que se debruçam sobre as lagoas, graffiti enchem as paredes e detritos preenchem o chão. Por entre jogos de luz e sombra chega-se até à cobertura por degraus que parecem escavados em betão vivo e a paisagem toma repentinamente conta dos sentidos e embriaga com toda a sua amplitude de ar, ilha e oceano. Eis uma nova mitologia a somar às ilhas encantadas que também chamaram de Atlantis.

Rafael Vieira (texto e fotos)

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