Estas estátuas da Avenida da Liberdade falam e Júlio Isidro, Herman e outros dão-lhes voz

Ao apontar o smartphone ao código QR, recebe-se uma chamada. As obras de arte colocadas no espaço público da freguesia de Santo António contam-nos a sua história, escrita pelo humorista Nilton.

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A voz da estátua de Alexandre Herculano, na Avenida da Liberdade, é personificada por Herman José Junta de Freguesia de Santo António
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A situação tem tanto de inusitada como de eficaz. Escassos segundos após se apontar a câmara do smartphone para o código QR colocado numa placa metálica nas imediações da estátua do Marquês de Pombal, abre-se uma página na net e, logo a seguir, recebemos uma chamada telefónica. “Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras, muito prazer. Marquês de Pombal para os amigos. Se quiser reservar o Marquês para festejar o campeonato da sua equipa, prima 1. Estou a brincar. Não é preciso reservar. Basta chamar 50 mil amigos e aparecer”, diz a voz de Júlio Isidro, na sua reconhecida elegância. Nos cerca de três minutos seguintes, conta a história do monumento inaugurado em 1934, num registo leve e bem-humorado, mas que se pretende historicamente correcto. Esta é uma das 22 estátuas falantes do projecto “História com Voz”, que começa a funcionar, este sábado, na freguesia lisboeta de Santo António, com especial destaque para a Avenida da Liberdade.

A iniciativa resulta de uma ideia tida, há alguns anos, pelo presidente da junta, Vasco Morgado (PSD), aquando de uma viagem a Londres. Num compromisso entre o rigor informativo e a eficácia comunicacional bem-disposta, pretende conferir um renovado apelo a muita da estatuária existente naquela zona central da capital. Em particular, na mais importante avenida da cidade, onde se concentra dezena e meia das peças que agora ganham nova vida. Isso acontece pelas vozes emprestadas por figuras do meio cultural e do entretenimento nacional, como Herman José, David Fonseca, Marina Mota, Fernando Mendes, Ricardo Carriço, António Raminhos ou Nilton. Este humorista é, aliás, o responsável pela redacção dos textos lidos pelas personalidades, trabalhando os conteúdos fornecidos pelo Centro Nacional de Cultura (CNC), um dos parceiros.

“Queremos oferecer à cidade uma nova linha identitária para algo que já temos e que, muitas vezes, passa desapercebido. E, ao mesmo tempo, cria-se mais um motivo de interesse para os turistas conhecerem a nossa história”, explica Vasco Morgado, justificando o projecto, que é financiado pela Câmara Municipal de Lisboa, através de um contrato de delegação de competências orçado em 50 mil euros. É que o “História com Voz” não é apenas para os falantes de português. Todos os outros podem ouvir em inglês as mesmas explicações dadas através das leituras das figuras públicas que fazem a narração, resultado de uma tradução e interpretação realizada por um sistema de inteligência artificial. Além das vozes, alguns dos trechos sonoros, que oscilam entre os três minutos e os três minutos e meio, contêm ainda elementos de sonoplastia.

“Fazemos isto de forma descontraída, mas respeitando as estátuas”, diz Vasco Morgado, ele próprio responsável pela voz da obra Alegoria ao Rio Tejo, da autoria do escultor Alexandre Gomes, situada na parte inferior da Avenida da Liberdade e que ali se encontra desde 1836, quando aquele arruamento era ainda o Passeio Público. O autarca, neto da actriz Laura Alves e do actor, empresário e produtor de espectáculos Vasco Morgado, de quem herdou o nome, conta ao PÚBLICO que a ideia para a iniciativa surgiu quando, numa visita à capital britânica, passou em frente a uma estátua de Sherlock Holmes e reparou que ela tinha um código QR. Apontou o telefone e, quando deu por si, ouviu uma chamada. “De repente, ele estava-me a ligar e falava como um convencido de primeira e tinha graça. Comecei logo a imaginar uma coisa destas para o Marquês”, conta, reconhecendo também inspiração nos audioguias usados nos museus londrinos.

Minipodcasts

De regresso a Lisboa, Vasco Morgado telefonou ao amigo Nilton e desafiou-o a desenvolver os textos que seriam as “vozes”, não apenas do Marquês de Pombal, mas também de um conjunto de estátuas que existem na zona da Avenida da Liberdade e no resto da freguesia de Santo António, mas que, para muitos, são ilustres desconhecidas. E ele achou piada à ideia. “Isto é tão bom que era óbvio que tinha de ser feito. Se é verdade que as pessoas sabem quem é o Marquês, na verdade, não fazem ideia de quem são quase todos os outros”, diz Nilton ao PÚBLICO, considerando que estes “minipodcasts”, como lhes chama, acabam por ser o veículo perfeito para passar de forma eficaz uma mensagem com um conteúdo sério, relacionado quer com a obra de arte, quer com o seu contexto histórico.

“A abordagem adoptada nos textos foi a de pegar na informação histórica e transmiti-la de forma rigorosa, sem que isto parecesse uma lição. O humor acaba por ser imprescindível. Isto tem de ter alguma leveza”, afirma o humorista, que através da sua narração personifica a fala emanada da estátua do compositor e pintor Alfredo Keil (1850-1907), localizada na Praça da Alegria. “O maior desafio disto tudo acaba por ser o tempo. Tens de cortar, deixar coisas de fora”, explica o artista e criativo, que se dedicou a reescrever da forma mais cativante possível a informação histórica caucionada por Guilherme d’Oliveira Martins, que foi presidente do Centro Nacional de Cultura entre 2002 e 2016 e é membro da Academia de Ciências de Lisboa.

Se é verdade que a grande maioria das 22 estátuas que agora “falam” fica ou na Avenida da Liberdade ou nas imediações, existem outras incluídas no “História com Voz” situadas noutros locais. É o caso do Jardim das Amoreiras, onde se encontram as estátuas de João dos Santos (1913-1987), médico de saúde mental, dramatizada pelo actor Afonso Pimentel; a do jornalista e escritor Adolfo Simões Müller (1909-1989), interpretada pelo actor Ricardo Carriço; e a referente a Ouranos, figura da mitologia grega que significa o “Deus do Céu”, criada pelo artista Etienne Hadju e cujo texto é lido por Simão Morgado. Já a voz da estátua do pianista, compositor e professor Vianna da Motta (1868-1948), situada no Jardim do Torel, cabe ao actor José Pedro Vasconcelos.

Para além de figuras históricas e mitológicas, há ainda espaço para obras de maior subjectividade, como a estátua Sou como tu, criada por Rui Chafes e referente à dimensão espiritual da humanidade. Confere-lhe corpo sonoro a voz da radialista Joana Cruz, da RFM.

Associado ao “História com Voz”, existirá no sítio do projecto (historiacomvoz.jfsantoantonio.pt/) um circuito de 5,4 quilómetros pensado pela Junta de Freguesia de Santo António, propondo um itinerário ligando todas as 22 estátuas. Começa no Marquês de Pombal e termina no Jardim do Torel.

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