O preço da descoberta

As escolas pré-universitárias e universitárias devem ser construídas sobretudo para a descoberta, sob pena de grande parte da humanidade se tornar a breve trecho inútil.

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Um átomo é uma entidade extremamente pequena – da ordem de décimo milionésimo de mícron – e o núcleo é tipicamente 10.000 vezes menor. Desde os anos 1930 sabemos que este contém protões, que são cargas positivas, e neutrões, que são partículas neutras. Sendo os protões cargas do mesmo sinal, elas repelem-se e por isso concluímos que nenhum núcleo (e, portanto, nenhum átomo mais complexo do que o hidrogénio, que só contém um só protão no núcleo) poderia ser estável. Como esses átomos existem, deduzimos que tem de haver também uma força atractiva dentro do núcleo que atrai protões e neutrões. Como a força repulsiva electrostática à escala do núcleo é gigantesca, concluímos que essa outra força atractiva tem de ser igualmente gigantesca.

Essa força é a chamada “força nuclear forte” e é, de muito longe, a mais poderosa que conhecemos. A versão dessa força que garante a coesão do núcleo é a sua forma mais fraca e mesmo assim é responsável pelo imenso poder destrutivo de uma bomba nuclear ou termonuclear.

Esse poder destrutivo não impediu, todavia, o seu estudo continuado desde os anos 30 do século passado. A curiosidade humana não é confinável e faça-se o que se fizer há-de sempre haver alguém a tentar descobrir como a força forte funciona. Por outro lado, as vantagens tecnológicas do seu uso são enormes (nem que sejam militares) e por isso é impossível parar o seu estudo.

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Na verdade, o mesmo acontece com outro assunto da moda, a inteligência artificial. Não é possível parar o seu desenvolvimento, nem é possível, devido às implicações económicas, fazer leis para o interditar. A História mostra que o pensamento não pode ser permanentemente proibido e o nosso sistema económico sempre protegerá a inteligência artificial pelas simples leis do mercado. Tal como na física nuclear, tudo o que podemos fazer são mecanismos de regulação.

Mas será que o problema está verdadeiramente na física nuclear ou na inteligência artificial? Um dos grandes problemas actuais é a confusão entre três conceitos: descoberta, ciência e progresso. Uma descoberta muda a forma como percebemos o mundo, enquanto a ciência sistematiza o processo de construção de conhecimento que sucede a uma descoberta. O progresso e a inovação usam esse conhecimento para a construção de uma cadeia de valor. Confundir inovação com ciência mais não faz do que tornar muito difícil o processo de descoberta. A ciência é a arte da descoberta, não simplesmente uma ferramenta económica. A inovação vem por acréscimo.

Sendo assim, podemo-nos perguntar como deveremos preparar a formação dos jovens desde a infância até à idade adulta. Se insistirmos em torná-los, como no passado, simples oráculos de um conhecimento existente, uma rede neuronal ou qualquer outro sistema de inteligência artificial há-de fazer deles a mais ou menos curto prazo seres inúteis e descartáveis, facilmente destruídos por um sistema económico implacável. Portanto, uma escola baseada apenas na aprendizagem do que existe condena-os à obsolescência programada.

Os sinais de que as direcções por nós escolhidas para a educação dos jovens estão erradas não enganam. Uma análise sumária dos resultados do PISA 2022 mostra que entre os países europeus apenas a Estónia (7º lugar), a Irlanda (9º lugar) e a Suíça (10º lugar) estão no pelotão da frente, ainda assim abaixo de vários países asiáticos, incluindo Macau. Portugal está na média do grupo da OCDE, que ocupa as posições entre a 13ª e a 33ª, seguindo no essencial o comportamento geral do grupo.

Mais interessante é constatar que os países asiáticos no pelotão da frente têm curvas de evolução anual bem diferentes e mais favoráveis do que as da OCDE, apesar de políticas de confinamento durante a pandemia amiúde mais restritivas. Nos países da OCDE, o declínio dos resultados educacionais começa na realidade antes da pandemia, e o papel desta última foi apenas o de tornar ainda mais visível o que já se anunciava.

Seguramente matéria de reflexão é a correlação existente entre os resultados do PISA e os níveis de crescimento dos países nas dez primeiras posições, que deixaram alguns deles de ser meras fábricas do mundo para apresentarem resultados científicos e tecnológicos que rivalizam com os das potências tradicionais.

Do que foi dito acima, conclui-se que as escolas pré-universitárias e universitárias devem ser construídas sobretudo para a descoberta, sob pena de grande parte da humanidade se tornar a breve trecho inútil. Se treinarmos os jovens apenas para a inovação, é seguramente o que acontecerá. Os jovens têm de ser estimulados e sobretudo focados para tão breve quanto possível se encontrarem na fronteira do saber com um conhecimento estruturado que lhes permita ir mais além. Nesse percurso, as ferramentas de inteligência artificial são úteis, mas representam apenas aquilo que são: ferramentas de apoio.

Nesta mudança os professores têm o poder transformador central. Infelizmente o seu prestígio social caiu vertiginosamente mercê de continuadas políticas educacionais erradas. O problema é que eles também foram treinados para ser oráculos e, na verdade, (mal)tratados como ferramentas automáticas de formação em massa. Em vez de discutir tanto quais são as melhores técnicas para ensinar o que existe, mais proveitoso seria começar a pensar como ensinar os professores e os alunos para encontrar o que ainda não existe. Para que isso seja possível os professores – todos os professores – têm de ter uma formação científica, artística e técnica de topo.

Os jovens devem ser treinados para a experimentação num mundo real e não virtual, focando-se na observação, compreensão e sistematização do que observam. Se tivermos sucesso nessa empreitada, sem dúvida os nossos jovens garantirão a sua sobrevivência (e realização pessoal) enquanto cidadãos e irão revolucionar a sociedade.

A universidade tem de ser, como é seu apanágio, um lugar de conhecimento, mas sobretudo de liberdade de pensamento. Nunca conseguirá cumprir integralmente o seu papel se estiver espartilhada em regras e cronicamente subfinanciada. Deve ser ouvida neste processo e a suas sugestões tidas em conta, uma vez que representa também o passo final da formação dos jovens antes da entrada no mercado de trabalho. Por isso a universidade também deve ouvir o que o mercado tem a dizer, embora mantendo a sua liberdade de acção.

A liberdade é o preço a pagar pela descoberta. Assumir as escolas e as universidades apenas como oráculos é matá-las e com elas perecerá a sociedade como um todo. Evitar que isso aconteça tem de ser o nosso objectivo central nas próximas décadas não só para garantir o propósito e realização pessoal dos cidadãos, mas também para não perdermos nem a inteligência humana nem a inteligência artificial que dela depende. De ambas depende o nosso futuro.

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