Portugal enfrenta uma “crise de biodiversidade” nas aves de meios agrícolas, alertam cientistas

São necessárias “medidas urgentes” de conservação em Portugal, alertam cientistas num texto publicado na Science. Em causa estão espécies como a abetarda, o sisão e o tartaranhão-caçador.

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O sisão (Tetrax tetrax) é uma das espécies consideradas prioritárias pela directiva europeia para a conservação das aves selvagens Luís Venâncio/DR
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Portugal enfrenta uma “crise de biodiversidade” no que toca às aves de espaços agrícolas, sendo necessárias “medidas urgentes” de conservação destas espécies, alertam cientistas numa carta, publicada esta semana, na revista científica Science.

Espécies como a abetarda (Otis tarda), o sisão (Tetrax tetrax) e o tartaranhão-caçador (Circus pygargus, também conhecido como “águia-caçadeira”) sofreram uma diminuição populacional de 50% a 80% ao longo da última década. Um terço das aves comuns nas estepes agrícolas também está em declínio.

“Há uma crise na biodiversidade de aves. Há espécies que se podem extinguir muito rapidamente, se não forem tomadas acções de conservação. É necessário implementar já medidas de emergência”, afirma ao PÚBLICO João Paulo Silva, co-autor do artigo e investigador do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CiBio-InBio) da Universidade do Porto.

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Dados do ICNF apontam para uma redução, nos últimos dez anos, de 50% da abetarda (na imagem) Luís Venâncio/DR

João Paulo Silva recorda que Portugal tem acordos internacionais que deve cumprir, nomeadamente aqueles decorrentes da Directiva Aves, que prevê uma boa gestão das zonas de protecção especial (ZPE) onde existem as três aves consideradas prioritárias: a abetarda, o sisão e o tartaranhão-caçador.

Questionado pelo PÚBLICO sobre quais são as medidas previstas para garantir a conservação das três espécies, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) refere, numa nota enviada por email, que estas aves prioritárias “têm sido monitorizadas regularmente no Alentejo”.

“As soluções para a conservação e manutenção destas aves no nosso território passam pelo estabelecimento de um programa agrícola direccionado para a conservação das aves que dependem dos sistemas agrícolas. Isso mesmo já foi transmitido pelo ICNF”, lê-se na nota.

O ICNF refere ainda que a Portaria 54-A/2023 prevê apoios para a protecção do tartaranhão-caçador, “como contrapartida ao não corte, nem pastoreio de um hectare em torno de cada ninho referenciado”. Contudo, a entidade reconhece que se trata de “uma medida pouco atractiva para os agricultores”, dados os valores em causa.

“Espera-se que a medida possa vir a ter um desenvolvimento mais abrangente, estendendo-se às outras espécies, para além do tartaranhão-caçador”, afirma o ICNF.

João Paulo Silva considera que as políticas públicas existentes não são eficazes. “As medidas ambientais que têm vindo a ser implementadas para estas áreas são ineficazes, não estão a funcionar de todo. E é aqui que eu acho que o Ministério da Agricultura tem de articular uma solução realista com os agricultores”, afirma.

“Divórcio” entre a conservação e a agricultura?

Além de João Paulo Silva, assinam a missiva os investigadores João Gameiro, Francesco Valerio e Ana T. Marques. No texto, os autores defendem uma articulação eficaz entre o Ministério da Agricultura e o do Ambiente, envolvendo os agricultores, para que as soluções agro-ambientais pensadas funcionem – o que, a avaliar pelo declínio das espécies, não está a acontecer agora.

“É claro que isto requer uma comunicação próxima entre os dois ministérios, mas não só. Os agricultores, obviamente, são parte integrante da solução. Tudo o que se venha a propor tem de ter um aval dos agricultores, e as medidas ambientais têm de ser realistas e atractivas para os agricultores. Conceptualmente, deveria ser como uma prestação de serviços, com remuneração. Não sei porque é que o Ministério da Agricultura não se entende com o Ministério do Ambiente, mas claramente há um divórcio”, diz João Paulo Silva.

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O sisão é uma das das espécies prioritárias mais susceptíveis à colisão com linhas eléctricas Getty Images

O co-autor da missiva argumenta que o Ministério da Agricultura não se pode pôr de parte “desta crise que estamos a viver”, uma vez que a tutela “é necessariamente parte da solução”.

O PÚBLICO tentou contactar o Ministério da Agricultura, questionando se estavam previstas medidas que permitissem uma articulação mais eficaz entre os organismos que tutelam a agricultura e a conservação, mas não obteve resposta.

Transição para práticas intensivas

Os autores recordam na carta que os espaços agrícolas, ao contrário do que se pode pensar, são espaços que tradicionalmente acomodavam a biodiversidade. A transição dos sistemas naturais para as áreas de cultivo agrícola extensivo foi, ao longo dos séculos, em grande medida compatível com a conservação de muitas aves. Foi a passagem recente para um modelo intensivo, quer de produção de gado, quer de culturas como o olival, que impulsionou o declínio das aves estepárias.

“É um bocadinho contra-intuitivo, mas as áreas agrícolas extensivas são muitíssimo importantes do ponto de vista da biodiversidade de aves. E se calhar não há talvez esse tipo de entendimento por parte do Ministério da Agricultura”, diz João Paulo Silva.

João Paulo Silva explica que tradicionalmente uma propriedade estava dividida em diferentes parcelas, nas quais havia uma rotação de culturas. Se numa parcela era cultivado um cereal e numa segunda outro, já a terceira permanecia em pousio no mínimo dois ou três anos. O terreno em causa poderia ser pastoreado nesse intervalo e lavrado ao fim desse período.

“Havia uma diversidade de habitats – as leguminosas, as sementeiras, os restolhos, etc. – e essa variedade acabava por criar condições para toda uma comunidade de aves. Neste momento, temos uma conversão para sistemas muito especializados nas áreas mais produtivas ou infra-estruturadas para o regadio”, refere o investigador.

Tais sistemas especializados implicam culturas permanentes que alteram a estrutura dos habitats. Deixa de haver áreas abertas, por exemplo, e as culturas anuais são substituídas pelas perenes (árvores e arbustos). “Esse habitat é completamente perdido”, diz. Com o abandono do cereal, há ainda uma conversão dessas propriedades para a produção de gado, sobretudo o bovino.

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A transição para culturas intensivas no Alentejo, como a do olival, contribuiu para o declínio de espécies de aves selvagens Miguel Manso

“Estas pastagens permanentes têm vindo a ser intensificadas ao longo dos anos, portanto, o encabeçamento tem aumentado muito, o que por si só não é um problema. A questão reside na forma como são geridos, se esta é ou não favorável às aves dos meios agrícolas”, refere o cientista.

Com o aumento do encabeçamento – termo que diz respeito à relação entre o número de cabeças de gado e a área exploração agrícola – dispara também a necessidade de oferecer forragens aos animais nos períodos em que o alimento está menos disponível.

Aposta-se sobretudo no feno, cortado entre o final de Abril e o princípio de Maio, intervalo que coincide, recorda João Paulo Silva, com o pico de nidificação de algumas das aves mais ameaçadas.

“Muitas vezes os fenos são a única estrutura disponível na estação para nidificar. Isto resulta numa armadilha ecológica, uma vez que, quando os fenos são cortados, os ninhos são destruídos. Por vezes, também podem matar crias e adultos”, explica o investigador.

O ICNF afirma estar a desenvolver uma operação de salvamento de ninhos de tartaranhão-caçador em risco de serem ceifados em parceria com a Liga para a Protecção da Natureza e o próprio CiBio-InBio.

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Ninhos de tartaranhão-caçador (ou águia-caçadeira) no Alentejo ADRIANO MIRANDA

“Em cada local é feita a contagem do número de casais [de tartaranhão-caçador], de ovos, de crias nascidas e de juvenis voadores, assim como de ninhos protegidos”, refere o documento do ICNF. O tartaranhão-caçador é a espécie que mais preocupa os especialistas; estima-se que haja menos de 100 casais desta ave actualmente no Alentejo.

Outras ameaças

Estas espécies enfrentam ainda outras ameaças. O sisão e a abetarda, por exemplo, são das espécies mais susceptíveis à colisão com linhas eléctricas. Estima-se que a taxa de mortalidade anual seja de 3% a 4% da população.

“Isto causa mortalidade de adultos, de indivíduos que podem ser reprodutores, o que pode ser muito preocupante, sobretudo agora que as espécies estão a declinar de forma muito acelerada”, esclarece João Paulo Silva.

Outro factor de pressão importante são as alterações climáticas. Os anos de seca exercem uma pressão muito grande sobre as áreas produtivas, sendo desejável salvaguardar habitats óptimos, onde estas espécies possam viver num nível controlado de stress durante períodos climáticos exigentes.

“Também as actividades associadas ao turismo de natureza, cada vez mais procuradas pelo público em geral, como o birdwatching [observação de aves] e a fotografia, têm contribuído para o incremento da perturbação das aves, em particular no período de reprodução, com consequências ao nível do seu sucesso e da demografia das populações”, refere o ICNF na nota.

Há dois anos, a associação ambientalista Zero apresentou uma queixa à Comissão Europeia precisamente por causa do declínio das aves estepárias em Portugal.

Os ambientalistas argumentavam que havia espécies “à beira do colapso” e atribuíam responsabilidades à “gestão desastrosa dos fundos para a agricultura” e à ausência de planos de gestão para as zonas protegidas previstas pela Directiva Aves.