É preciso terminar com o estado de negação

Numa situação de seca histórica cuja previsão aponta para agravamento, o desperdício de água é equivalente a um crime.

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No final de um ano razoavelmente chuvoso, a disponibilidade de água na região algarvia e no Sul do Alentejo causa alarme. As reservas estão em mínimos e estamos sempre à espera de um pico quase milagroso de precipitação que traga alívio. Os meteorologistas, profissionais ou amadores, seguem todos os dias os sistemas provenientes do Atlântico e desesperam quando a precipitação não passa a serra algarvia. Esta dependência do sistema natural é excessiva: conhecemos a situação, sabemos a origem do problema, nunca como agora tivemos à nossa disposição instrumentos de gestão e eficiência, mas o sentimento geral é o de que não estamos como coletivo a mostrar ação suficiente.

Em declaração recente à Lusa, amplamente reproduzida pela comunicação social, o presidente da Comunidade Intermunicipal do Algarve, António Pina, disse: “A situação é muito preocupante. Estamos perto de uma situação catastrófica e temos de começar a poupar água a sério.” Fala-se de cortes de 70% para o setor agrícola e de 15% para o setor urbano, se bem que estes números serão seguramente afinados pela Agência Portuguesa do Ambiente ao longo das próximas semanas, mas o futuro só nos trará más notícias.

Não chegámos aqui de repente. Temos hoje uma capacidade assinalável de prever as necessidades e as disponibilidades em água, e temos instrumentos para medir a precipitação e o caudal dos cursos de água. Sabemos que o Sudoeste está em défice hídrico desde há muitos anos. Ainda recentemente, deparei com mais uma análise realizada pela Agência Portuguesa do Ambiente há cerca de dois anos em que as previsões para o fim deste século apontam, na mais gravosa das hipóteses, para uma redução da precipitação perto dos 30% e do volume disponível para os diferentes usos de quase 50%. Numa revisão dos mais recentes resultados, publicada em 2023, confirma-se uma redução da precipitação média e que esta se concentrará em períodos mais curtos, mesmo em cenários de emissões que não são os mais gravosos.

Vamos mesmo imaginar por um instante que as previsões são exageradas. Imaginemos também que a lucidez humana nos vai levar a reduções significativas de emissões de gases de efeito de estufa na escala global. E que a racionalidade vai imperar no uso consciente da água e numa redução drástica do desperdício. Mesmo assim estamos perante um cenário de grande dificuldade que, como coletivo, nos recusamos objetivamente a aceitar. Estamos todos em negação.

Para uma região como o Algarve, não podemos também esquecer o que se está a observar no oceano. Cerca de 90% da energia adicional que chega à superfície da Terra sob a forma de calor está a ser absorvida pelo oceano que, devido à sua grande capacidade térmica, se tem traduzido num ainda modesto aumento da temperatura. Ao longo de 2023 já se mediram valores médios claramente acima da série histórica dos últimos quarenta anos, que é muito homogénea, medida por sensores a bordo de satélites de observação da Terra e calculada sempre da mesma maneira. O aquecimento do oceano está a disponibilizar energia adicional para a atmosfera intensificando os fenómenos meteorológicos extremos.

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Os oceanos registaram em 2023 a temperatura mais alta da história, pelo quinto ano consecutivo Nuno Alexandre

Se queremos ser simples — e muitas vezes temos de procurar na simplicidade a forma de compreender e atacar os problemas complexos —, podemos dizer que estamos a viver num mundo mais quente, numa atmosfera mais energética, numa dinâmica mais intensa. Se queremos compatibilizar esta situação com a vida pendular e regular que precisam as nossas comunidades, necessitamos absolutamente de fazer “médias no tempo”, guardando água quando está disponível para utilização mais tarde e “médias no espaço”, transferindo recursos em água doce de onde existe em quantidade suficiente para onde é precisa. As escolhas a fazer são ainda limitadas pelos custos acrescidos no acesso a água de qualidade, e pela impossibilidade de restringir de forma significativa os fluxos da população.

É fácil demonizar os grandes utilizadores (a agricultura), os usos que parecem menos relevantes (os campos de golfe), os atrasos na materialização de sistemas de dessalinização (finalmente em curso), ou as discussões sempre controversas dos transvases entre bacias hidrográficas. Todas estas áreas têm de ser revisitadas com pragmatismo, consciência de que o clima está a mudar e, pior do que isso, de que não temos nenhum fator que nos indique que estejamos numa situação de estabilidade climática. Pelo contrário, os últimos anos, os últimos modelos, as últimas análises independentes, confirmam que a mudança climática irá prosseguir inexoravelmente.

Numa situação de seca histórica cuja previsão aponta para agravamento, o desperdício é equivalente a um crime. Temos de usar todos os mecanismos necessários para uma utilização eficiente, que deve ser monitorizada sem contemplações. Sou particularmente sensível à necessidade de evitar estratégias com potenciais consequências irreparáveis quer estejamos a falar de ecossistemas quer da circulação subterrânea da água e da sua interação com o oceano, mas todas as estratégias têm de ser consideradas, sendo a sua aplicação baseada na melhor ciência disponível, e no desenvolvimento das tecnologias necessárias para minimizar estes impactos.

São necessárias soluções aplicadas de forma persistente e em tempo útil, que viabilizem a produção alimentar, a atividade económica da região e deem segurança às comunidades. A estratégia escolhida implicará escolhas todas elas difíceis. Mas temos, de uma vez por todas, que terminar com o estado de negação.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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