Maior catálogo genético do mar está disponível para ajudar a resolver os problemas do mundo
Nova base de dados tem 317 milhões de grupos de genes de microrganismos marinhos. Conhecimento poderá ajudar na produção de fármacos, na degradação do plástico e na compreensão das mudanças do clima.
A extensão, o volume e a profundidade dos oceanos fazem com que este seja o habitat mais difícil de se conhecer, principalmente para os investigadores dedicados ao estudo dos microrganismos. Mas um trabalho publicado agora apresenta uma nova base de dados, a maior, com informação genética sobre micróbios de todos os oceanos, que vivem em diferentes profundidades e habitats.
Ao todo, são 317 milhões de grupos de genes que a equipa da Universidade de Ciência e Tecnologia King Abdullah (KAUST, na sigla em inglês), na Arábia Saudita, sequenciou. O catálogo vai ficar disponível para quem quiser aceder através da Plataforma de Análise Metagenómica KAUST (KMAP, na sigla em inglês), avança o comunicado da universidade sobre o novo trabalho, publicado na revista Frontiers in Science.
“A diferença em relação aos outros catálogos é que o nosso tem uma sequenciação completa dos genes que codificam para proteínas e também uma datação completa das funções destes genes”, diz ao PÚBLICO Carlos M. Duarte, investigador sénior do trabalho e director do Centro de Investigação do Mar Vermelho da KAUST. Segundo o biólogo, que se dedica ao estudo do impacto das alterações climáticas nos sistemas aquáticos, ao conhecer-se a genética dos microrganismos que povoam os mares é possível não só começar a “perceber a evolução da vida” naquele habitat mas também “explorar quais são as proteínas que podem ter uma aplicação na biotecnologia”.
Estima-se que os oceanos contenham 2,2 milhões de espécies de eucariotas: organismos cujas células são formadas com núcleos, sejam unicelulares como a ameba, ou multicelulares como uma alforreca, uma alga ou uma baleia-azul. Mas apenas 10% daquelas espécies já foram catalogadas. Por outro lado, o desconhecimento ainda é maior em relação aos procariotas – microrganismos cujas células não têm núcleo e que têm um passado ainda mais antigo, como as bactérias e as arqueias – e aos vírus.
“Um litro de água do mar contém cerca de 1000 milhões de bactérias e 10 mil milhões de vírus”, escreve Enric Sala, professor da National Geographic Society, em Washington, nos Estados Unidos, que não esteve envolvido no estudo mas escreveu um artigo a analisar a sua importância. “Uma gota de água do mar contém cerca de 100 espécies de bactérias”, acrescenta, dando a dimensão da empreitada que é tentar conhecer a biodiversidade dos oceanos.
Depois, há o factor temporal. “O oceano é o berço da vida: com 3,9 mil milhões de anos de história evolutiva, isto está reflectido numa representação muito mais alargada dos táxones da árvore da vida [no mar] comparada com uma representação muito mais reduzida em terra”, sublinha o artigo da Frontiers in Science.
Ao todo, no novo estudo, foram recolhidas 2102 amostras. Depois, com uma técnica avançada de genética, foi feita a sequenciação do ADN existente no material biológico das amostras. Com este tipo de análise, não se fica a conhecer o aspecto dos organismos, o seu tamanho ou como interagem entre eles, nem sequer se as células de onde se retirou o ADN estavam vivas ou mortas.
Mas há um mundo de informação que fica, de repente, disponível. Com o conhecimento passado da genética sobre a vida marinha, foi possível classificar o tipo de organismo e a função genética para mais de metade dos 317 milhões de grupos de genes identificados. Os genes, que são pedaços das longas moléculas de ADN, constituem informação codificada que a maquinaria da célula usa como base para produzir proteínas. Ao conhecer-se os grupos de genes que existem numa determinada amostra, é possível deduzir o tipo de metabolismo que têm os micróbios existentes na amostra.
“Ao fazer a correspondência desta informação com a localização de onde foi recolhida a amostra e o tipo de habitat, o catálogo resultante fornece uma informação sem precedentes sobre que tipo de micróbios vivem em que lugares [do oceano] e o que é que fazem”, lê-se no comunicado. A partir daqui, é possível aprofundar o conhecimento sobre os grandes ciclos de elementos como o carbono e o azoto, determinantes para questões ambientais do planeta como as alterações climáticas e a poluição.
Mas é também possível descobrir fenómenos mais específicos, como a resposta que os microrganismos estão a desenvolver em relação aos plásticos, que estão a inundar os oceanos nos últimos 50 anos. “No catálogo detectámos genes de proteínas que são capazes de degradar plásticos”, aponta Carlos M. Duarte. “Isto indica que os recursos genéticos dos oceanos também estão a evoluir e são capazes de responder às mudanças introduzidas pela humanidade.”
Este tipo de investigação é um corte na forma como se conhecia a biodiversidade microscópica dos oceanos, que anteriormente se apoiava mais na descrição taxonómica dos organismos e menos nas suas funções, explica Carlos M. Duarte. Agora, o conhecimento “dos recursos genéticos do oceano pode ser utilizado para resolver os grandes problemas da humanidade no âmbito das mudanças climáticas, ou para desenvolver novas formas de fontes de energia ou resolver problemas como a proliferação de bactérias resistentes aos antibióticos”, enumera o biólogo.