Seca no Algarve: “Só um milagre nos pode salvar”
Os campos estão verdes, as laranjeiras carregadas de fruta, a água ainda corre nas torneiras – uma ilusão. As barragens algarvias estão a bater no fundo, temendo-se o pior dos cenários no Verão.
As manchas amarelas da erva conhecida por trevo-azedo ou boas-noites (Oxalis pes-caprae) cobrem os campos na região de Silves, no Algarve. As flores da planta, vinda da África do Sul, indiciam tempo primaveril, mas estamos em pleno Inverno, e chuva é coisa rara. O turismo agradece o sol e as altas temperaturas fora de época, desde que a água não deixe de correr nas torneiras. Mas o clima social é de ansiedade. “Só um milagre nos pode salvar”, desabafa o presidente da Associação de Regantes da zona de Silves, João Garcia, a localidade que concentra 50% da produção da marca “laranja algarvia”.
Decorridos dois verões sem água, a exploração de Carlos Cabrita, em Paderne, morreu. As laranjeiras secaram, e os três hectares de terreno ficaram em prado natural. “Mudei de actividade; agora, dedico-me à restauração”, diz o agricultor, agrónomo de formação, ligado às causas ambientais. “O Algarve precisa de mudar o chip, não existe água para tudo.”
A alternativa económica, defende, passa por “acrescentar valor à produção agrícola, com a transformação dos produtos”, em vez de aumentar a escala. Em Silves, exemplifica, instalou-se uma fábrica que exporta “sumo a granel para os grandes centros de consumo a nível mundial, como se a laranja fosse produzida em qualquer outra região ou país”.
Repensar o futuro
A escassez dos recursos, alega, obriga a repensar um futuro que já é presente, por se ter esquecido as vicissitudes do clima mediterrânico. “Temos que nos adaptar porque os citrinos e os abacates, com o modelo que está montado, exigem água o ano inteiro.”
O furo que abastecia o pomar de Carlos Cabrita, há dois anos, baixou o nível da água em 40 metros. Queimou-se a bomba. “Esse foi o alerta para o que vinha a seguir: a água iria faltar, e não valia a pena estar a pôr mais dinheiro, sabendo que mais tarde ou mais cedo iria ter problemas.” As oliveiras antigas, adaptadas ao clima, “mesmo com pouca água da chuva, aguentaram-se”.
A situação ilustra o que se passa na franja do principal aquífero do Algarve – Querença/Silves, que regista no Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos (SNIRH) os níveis mais baixos desde que há registos. Perto da fonte que alimenta este “rio” oculto, em Querença, foi autorizada a construção do campo de golfe Quinta da Ombria, regado a partir das águas subterrâneas. A seguir ao empreendimento turístico, a ribeira deixou de correr.
O amanho das terras
Num pomar de abacateiros, na Penina, Hélio Mourinho corta a erva entre as linhas de árvores, todas alinhadas como numa parada militar. O trabalho, executado de forma mecânica, tem um objectivo: “Manter, no solo, a humidade para preservar o ecossistema, evitando dar herbicida indiscriminadamente.”
O agricultor faz parte da geração formada na Universidade do Algarve, com origens no meio rural. Seguiu a tradição familiar do amanho das terras, com o olhar nos mercados europeus, mais exigentes no cumprimento de normas ambientais. Os insectos, exemplifica, “são importantes para defender os abacateiros das pragas”, daí, explica, a preocupação com a aplicação dos fitofármacos, que não matam só as ervas daninhas.
O pomar, de 27 hectares, na Penina (Portimão) foi plantado há três anos. A previsão é que possa dar fruta no próximo Verão. Na zona de Silves, explora mais 30 hectares de citrinos. Por experiência, há cerca de dez anos, refere, plantou dez hectares de romãzeiras, espécie mais resistente à seca. “Resultou, e já exportamos.”
A "pele" seca do chão
A barragem do Arade (principal fonte de abastecimento agrícola de Silves, Lagoa e Portimão), durante este Inverno, “subiu apenas dois centímetros”. O novo ano hidrológico começou e as ribeiras não correm. No ar, de vez em quando, surgem sinais de que o céu vai desabar, carregado de água. Porém, as nuvens cinzentas, de passagem, apenas vão deixando cair uns pingos para matar a saudade.
Da pouca humidade que o solo consegue reter na epiderme do chão, nasce erva e pouco mais. As chamadas culturas de sequeiro, favas e ervilhas (regadas pela água da chuva), não se fizeram. E, a manter-se a presente situação crítica, avizinha-se um Verão a conta-gotas, com piscinas vazias e golfes de relva seca.
O Governo prepara-se, na próxima semana, para anunciar reduções de 70% no fornecimento de água ao sector agrícola e de 15% nos consumos domésticos. A medida, preventiva, é vista como uma inevitabilidade, embora alguns agricultores entendam que não é exequível. “Com um corte de 70%, os pomares não sobrevivem, não acredito que vá para a frente. “Não tínhamos possibilidade de produzir”, diz Rui Sousa, a transpirar.“Acabei de descarregar sacos de adubo”, justifica.
O braço parte do lado mais fraco
O jovem agricultor é um ex-aluno da Universidade do Algarve, produtor de citrinos, com 45 hectares, distribuídos por três parcelas de terra em Silves, Paderne e campinas de Faro. “Por acaso, não utilizo água da barragem, tenho furos, mas instalei contadores de rega”, esclarece. Até porque, justifica, “gosto de saber a água que gasto, cerca de 6 mil metros cúbicos, por hectare/ano”.
Quanto ao facto de o plano de contingência colocar como prioridade o consumo urbano, exclama: “Prioridade, quanto baste!” A questão não se lhe afigura linear. “Até que ponto o consumo humano deve ter prioridade, sabendo dos gastos domésticos em excesso e fugas nas redes de abastecimento público?”, pergunta.
Rui Sousa faz a ressalva de que não é especialista em hidráulica, mas sugere a diversificação de fontes de abastecimento, para enfrentar a escassez de recursos. “Tem de haver um sistema de canais comunicantes entre as albufeiras e os rios. Uma obra que já devia ter sido feita há muito tempo.” Uma vez chegados ao ponto crítico, ilustra, o braço parte pelo lado mais fraco: “Os agricultores, que são uma minoria comparando com as milhares de pessoas [dos centros urbanos], é que são as vítimas.”
A notícia mais aguardada: chove ou não?
A previsão meteorológica é a notícia mais aguardada, quando se entra num café de Silves com televisão. Vai ou não chover, amanhã?, ouve-se. “Estamos tramados. Aqui, não chega nem pinga”, ralham, quando se anuncia: chuva a Norte, sol no Algarve. Não existem soluções de curto prazo.
Os presidentes de câmara e a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), nos últimos meses, têm vindo a insistir na necessidade de avançar, sem mais demoras, com a execução do projecto da ligação das barragens ao Guadiana. “Uma obra necessária e prioritária”, sublinha, por seu lado, o agricultor João Garcia, em sintonia com a opinião manifestada por outros agentes económicos. Nas proximidades, a barragem do Arade vai ter 4,5 milhões de metros cúbicos destinados ao sector agrícola. “Não chega, precisamos de, pelo menos, mais um milhão de metros cúbicos”, reclama
Pouca água, muita procura
Do lado dos beneficiários da barragem da Bravura, os “cortes” são uma inevitabilidade. “Para mim, já não é novidade”, diz o presidente da associação de regantes do perímetro de rega Alvor/Penina, António Marreiros, referindo-se às propostas do ministério do Ambiente.
Os pequenos agricultores “estão a abandonar a actividade”, empurrados pela seca. A Bravura “bateu no fundo”, sublinha António Marreiros. Desde há três anos, prossegue, “estamos nos limiares da sobrevivência”.
As culturas de Primavera e Verão deixaram de se fazer. Os pomares foram mantidos, por enquanto, com recurso à captação de águas subterrâneas. O perímetro de rega desta albufeira, criado há mais de 60 anos, recorda, chegou a ter 1800 hectares. A área actual está reduzida a pouco mais de metade. “Deverá rondar os mil hectares”. Uma parte significativa dessas parcelas agrícolas foi, entretanto, ocupada com urbanizações e o campo de golfe da Penina.
Em sentido inverso à agricultura, a monocultura turística, insuflada pelo negócio do imobiliário, cresceu e multiplicou-se como se os recursos naturais fossem inesgotáveis. O Algarve está a passar pela pior seca da última década, mas não faltam propostas de investimento em projectos nas áreas de turismo, ignorando essa realidade. A empresa Águas do Algarve está a juntar à reserva das albufeiras, água extraída de furos que estavam desactivados, para reforçar o sistema de abastecimento público.
Obras demoram anos, a crise é agora
A sustentabilidade da região, preconiza João Garcia, passa por olhar para o território de forma integrada. “O turismo deverá ter como complemento a agricultura e as pescas.” É nessa linha, de resto, que se inscrevem as propostas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRP) – o instrumento financeiro que irá financiar a construção da central de dessalinização, e o transvase do rio Guadiana, a partir do Pomarão.
“São obras para daqui a três ou quatro anos, a crise da falta de água é o presente”, adverte o agricultor. No curto prazo, admite, pouco mais há a fazer do que poupar hoje para gastar amanhã. Nesse sentido, a associação de regantes pôs em marcha um plano de contingência, para tornar mais eficiente o sistema de rega, “só vamos gastar o estritamente necessário para manter as plantas”.
O professor Amílcar Duarte, da Universidade do Algarve, considera que um corte de 70% no sector agrícola “deixa os pomares no limite da sobrevivência”. A construção de novas barragens, defende, “pode ser uma solução”, dada a necessidade de armazenar o máximo, no Inverno, para gastar no Verão.
Os estudos relacionados com as alterações climáticas, justifica, “indicam que a pluviosidade vai ocorrer em períodos cada vez mais curtos, e de forma intensa”. Já em relação à construção da central de dessalinização, admite, “pode resolver o problema dos empreendimentos turísticos, construídos no litoral, mas não serve a agricultura”. Os custos de produção, avisa, seriam incomportáveis. “Quando custaria uma laranja, produzida no interior, com a água transportada do mar?”, questiona.