Do bagaço ao engaço, matéria orgânica no Alqueva é queimada e não chega à compostagem
A EDIA traçou como objectivo produzir em 2019 um total de 250 mil toneladas de fertilizantes naturais através de compostagem, mas ainda não se foi além de 5 mil toneladas. A actual lei é um obstáculo.
Desde 2009 que a Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas de Alqueva (EDIA) tenta concretizar a instalação de 12 unidades de recirculação de subprodutos de Alqueva (URSA), mas está difícil a missão de sensibilizar agricultores e produtores pecuários para a importância da compostagem. O mesmo acontece com a legislação em vigor, que não permite este tipo de infra-estruturas em território circunscrito à Reserva Agrícola Nacional (RAN). Ou seja, a própria lei é um obstáculo ao plano.
Anualmente, são produzidos, em média, nos blocos de rega de Alqueva, mais de 1 milhão de toneladas de subprodutos (bagaço de azeitona, lenha de poda de olival, folhas de oliveira, engaço de uva, casca verde de amêndoa, palha de cereais). Cerca de 80% desta matéria orgânica continua a ser queimada, quando podia ser transformada em 500 mil toneladas de fertilizantes através de um processo de compostagem que possibilitaria recuperar a capacidade agrícola de cerca de 100 mil hectares de solo em Alqueva e a substituição gradual da adubação química e do seu efeito na degradação dos recursos hídricos.
No entanto, vários constrangimentos estão a emperrar a instalação das URSA pela EDIA. A proposta avança com a localização de unidades de compostagem por cada 10.000 hectares, distanciadas entre si cerca de 10 quilómetros, nas quais os agricultores e industriais possam entregar materiais orgânicos e, em troca, levar composto para fertilizar as suas explorações.
Convencer os agricultores
Quando a EDIA apresentou o primeiro documento sobre compostagem, em 2009, acreditou-se que o processo de instalação do sistema de compostagem seria rápido, “mas ainda estamos a tentar convencer as pessoas da sua importância, e não está a ser fácil”, reconhece ao PÚBLICO, David Catita, técnico no Departamento do Ambiente da EDIA. Continua a ser “reduzida ou nula” a valorização dos subprodutos e resíduos agrícolas, quando o seu valor pode ser equiparado aos nutrientes minerais importados e com vantagens ambientais.
Mas, apesar da compostagem ser aceite na Europa, “em Portugal existem limitações à implementação desta técnica em toda a sua plenitude”, lamenta o técnico da EDIA, empresa que publicou, em 2023, um manual sobre o tema: “Compostagem. Uma solução sustentável.” O documento salienta outro dos grandes obstáculos ao tratamento da matéria orgânica produzida no regadio de Alqueva: “Não faz sentido (…) que se continue a tropeçar em obstáculos legais [à compostagem] colocados há décadas, no contexto de outra realidade agrícola, industrial e ambiental, mas também de outro enquadramento em termos de necessidade de acção perante as mudanças que se avolumam diariamente.”
David Catita sublinha que a monitorização do solo realizada pela EDIA desde 2009 indica que o nível de matéria orgânica em todo o projecto Empreendimento de Fins Múltiplos do Alqueva (EFMA) está entre 0,7% e 1%, quando, em circunstâncias normais, deveria situar-se entre os 3% e 4%. Esta discrepância deve-se ao facto de, ao longo das últimas décadas, os agricultores no Alentejo terem dado pouca relevância à deposição de matéria orgânica no solo, pelo que a formação de húmus “desapareceu em décadas de agricultura não conservativa”, observa o técnico da EDIA.
As vantagens para o solo
A baixa fertilidade das terras aráveis força os agricultores a usar e abusar da adubação mineral, num processo contínuo que está a conduzir à erosão dos solos. O manual de compostagem publicado pela EDIA reconhece que este fenómeno “predomina nos blocos de rega entre o moderado a elevado, devido à presença de áreas significativas com solos muito susceptíveis à erosão.”
Por outro lado, quando o solo está desprovido de matéria orgânica, “tem dificuldade em reter a água e os nutrientes que lhe são fornecidos”. Parte dos recursos hídricos utilizados na rega acaba, através das escorrências, nas massas de água e no crescimento excessivo de algas, “gerando processos de degradação da sua qualidade por eutrofização e dificultando o processo de bombagem e filtração da água que abastece o regadio”, realça o documento publicado pela EDIA.
Acresce ainda que “o solo com apenas 1% de matéria orgânica consome mais 150 mil litros de água por hectare”, refere David Catita, destacando outro pormenor: a recuperação de um solo pobre em nutrientes (microorganismos) necessita de “cinco toneladas por hectare e por ano e no espaço de dez anos a matéria orgânica aumenta 1%.”
"Um dogma instalado"
Assim, a compostagem vem contrariar “um dogma instalado” quando diz que o processo de formação de solo não é perceptível à nossa escala temporal. Como descreve o manual de compostagem, “a formação de solo ocorre (…) por degradação da rocha (processo muito lento), mas forma-se também na superfície, através da incorporação de matéria orgânica, geradora de vida microbiológica que acelera os processos de formação de solo.”
A importância da compostagem assume ainda uma outra dimensão quando o preço dos fertilizantes está em alta e descontrolado no mercado mundial, constrangimento que não demove o Ministério da Agricultura e Alimentação (MAA) de manter, em vigor, a legislação que não contempla a compostagem. “A situação mais insólita que enfrentamos é a da Direcção Regional de Agricultura e Desenvolvimento Regional, que nos proíbe de fazer compostagem em terrenos da Reserva Agrícola Nacional”, denuncia David Catita, dando conta de que “é muito limitada a área onde se pode fazer compostagem”.
Na generalidade das situações, e face à proximidade desejável das unidades de compostagem às explorações agrícolas, “vamos encontrar os locais mais favoráveis para instalação destas unidades integrados na reserva agrícola nacional (RAN), território que, em grande parte, nos está interdito”, assinala o técnico da EDIA.
Em 2019, foi criada em Serpa, na Herdade da Abóbada, em parceria com a Direcção Regional de Agricultura do Alentejo, a primeira unidade de compostagem da EDIA, que tem capacidade para produzir 5 mil toneladas ano, um volume que está longe da meta final que se pretende alcançar: cerca de 250 mil toneladas de fertilizantes naturais e no prazo de uma década.
O PÚBLICO solicitou informações ao Ministério da Agricultura e Alimentação sobre o projecto de compostagem da EDIA e as restrições que a legislação colocava à sua instalação, mas não foram prestados esclarecimentos.