Pellets na Galiza: “O Prestige era a maré negra, isto é a maré branca”
Vinte anos após o desastre ambiental do Prestige, a costa galega é invadida por pequenas esferas de plástico. Voluntários limpam as praias. Os pellets também já apareceram em Portugal.
São pouco mais de dez pessoas e estão de joelhos, curvadas, empenhadas numa só tarefa: identificar pequenas esferas de plástico e retirá-las, entre algas, conchas e detritos, da areia da praia de Madorra, em Nigrán. São voluntários que tentam, com as próprias mãos, combater uma nova uma crise ambiental na costa do norte de Espanha, mais de 20 anos depois do desastre do Prestige.
“O Prestige era a maré negra, isto é maré branca.” Alba Costas, 35 anos, é uma das voluntárias que, esta quarta-feira, entre o céu cinzento e o sol tímido a espreitar, se dedicaram a retirar bolas de plástico com menos de cinco milímetros de diâmetro, dispersas na praia da cidade que a viu nascer. Estes pellets estão a invadir, desde o passado dia 13 de Dezembro, a costa do norte de Espanha, desde a Galiza ao País Basco. As esferas de plástico chegaram a Espanha depois de um cargueiro ter perdido, a 8 de Dezembro, parte da sua carga ao largo da costa portuguesa, a 80 quilómetros de Viana do Castelo.
Estima-se que o navio, propriedade da Maersk, uma das maiores transportadoras do mundo, tenha perdido seis dos contentores que transportava, os quais continham mil sacos de 25 quilos, num total de 25 toneladas. A presença dos chamados “pellets de plástico” na costa norte de Espanha intensificou-se a partir do 23 de Dezembro. O alerta para uma potencial crise ambiental começou a ser dado por membros da associação ecologista galega Noia Limpa, que encontraram vários sacos com o nome Bedeko Europe, uma empresa polaca que produz materiais plásticos.
O Azul foi em reportagem à costa galega, invadida por pequenas esferas de plástico, que têm sido retiradas nas praias por centenas de voluntários.
Tiago Bernardo LopesNa primeira semana de 2024, o assunto chegou aos meios de comunicação espanhóis e o alerta suscitou a acção de voluntários, que rapidamente se organizaram através de grupos de WhatsApp para limpar o litoral galego, censurando a lentidão das autoridades para actuar. “O que me motiva a estar aqui é a inacção das administrações. Hoje, vemos quatro operários [a recolher os pellets nas praias] da Junta [da Galiza], mas chegaram tarde. E eles dizem que não há nada, mas andas três passos e encontras os pellets”, diz ao PÚBLICO Lucía Chamorro, 39 anos, outra das voluntárias que se encontravam na praia de Madorra, numa extensão de 250 metros, a recolher os microplásticos.
Mais de 200 voluntários
Foi Lucía quem, no passado dia 7, criou um dos grupos de limpeza que estão actuar nos municípios da província de Pontevedra, no Sudoeste da Galiza. Já são hoje mais de 200 voluntários, movidos pelo activismo. “Nenhum de nós trabalha no mar.” Nestes dias, entre as 16h e até ao pôr do sol, os voluntários, com luvas e munidos de baldes, pás e coadores, vão recolhendo o plástico.
É um trabalho complexo, que exige paciência. Ali os plásticos opacos têm de ser separados dos restantes resíduos – entre os quais outras minúsculas bolas de esferovite que também poluem as praias – e de algas. “Seria fácil chegar aqui com uma máquina e recolher tudo, mas isto é comida para os animais, cumpre uma função na biodiversidade”, alerta-nos Alba Costas, antes de pôr mãos à obra e peneirar a areia, separando-a das minúsculas esferas de plástico.
Sobre os pallets sabe-se que o material é em parte composto por polietileno, mais conhecido como “PE”, e por polietileno tereftalato (PET), e, por isso, resistente à degradação. São usados para produzir objectos do dia-a-dia, como garrafas de água ou sacos de plástico.
O hidrobiólogo Adriano Bordalo e Sá, do Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar da Universidade do Porto, esclareceu à agência Lusa que as esferas não são tóxicas em si, mas facilmente se partem, passando a “microplásticos, e depois ainda se fraccionam mais, em nanoplásticos, do tamanho de micrómetros, e aí está o problema”. Na cadeia alimentar, “essas partículas vão sendo colonizadas por seres vivos e, devido ao odor, muitos peixes vão pensar que é alimento e os bivalves vão filtrá-los indiscriminadamente”, explicou ainda.
Se o peixe morre...
Para quem mora na região, a explicação preocupa e o medo é real. “A Galiza vive da indústria piscatória, e se o peixe morre, a indústria morre também”, avisa Alba. “[A invasão dos pellets tem] impacto na fauna marinha e nós, indirectamente, também ficamos afectados”, continua.
Na praia de Nigrán, concelho que fica a apenas 20 quilómetros da fronteira com Portugal, os voluntários não se importam de sujar a roupa, de enfrentar a chuva e o frio que contrastam com a época veraneante, que seduz a chegada de turistas. Ali, os poucos combatem com urgência de limpar. Até o pequeno Izan, filho de Lucía, ajuda. Questionamo-lo sobre a razão de ali estar e a resposta é pronta: “Quero ajudar o meio ambiente.” A mãe acrescenta: “Já faz activismo para que desde pequeno saiba o que é o mundo. Isto está cada vez pior, é insustentável, e isto dos pellets é a ponta do icebergue.”
Também Oscar e Marta, casal de 23 anos que se juntaria ao grupo inicial, falam de ajuda de emergência. “Queremos que as praias estejam limpas, e o que não se vê, no mar, pode causar problemas ainda maiores”, diz Marta. “Ninguém gosta disto, as praias estão sujas, os peixes podem morrer por isto e não é bom”, observa Oscar.
Comparação com Prestige
A invasão dos pellets na costa norte espanhola está a ser, por alguns meios, comparada à pior catástrofe ambiental vivida na Galiza, o naufrágio do petroleiro Prestige e o derrame de 63 mil toneladas de fuelóleo, em 2002.
Se mais a norte da região, na província de Corunha, têm sido recolhidas enormes quantidades dos microplásticos, a sul o problema ainda não tem a mesma magnitude. “Nesta zona, os pellets chegam, mas ainda está longe de se poder dizer que é uma catástrofe ambiental”, assinala Lucía, alertando, porém, que “não se sabe o que se pode passar dentro de uma semana”.
A navegar pelos mares estão “mil e um sacos perdidos que não se sabe onde estão e onde vão parar”, sublinha. Também Alba estabelece a comparação: “O Prestige foi a maré negra que veio às praias, que manchou tudo, que afectou o mar, a costa e os areais, onde muita fauna surgiu morta ou muito debilitada. Neste caso não sabemos o dano que vai provocar, mas, sim, pensamos que o Prestige era a maré negra, e esta é a maré branca.”
Também o desconhecimento sobre onde depositar os pellets assola a população. “O que estamos a fazer é levá-los para casa, até que saia informação mais actualizada e informada sobre onde depositá-los”, sublinha Alba Costas.
A comparação da situação actual com o naufrágio do Prestige estabelece-se não apenas no impacto ambiental, mas também na inércia das autoridades. “Infelizmente podemos comparar. É exactamente igual a negação das administrações, o pouco envolvimento na limpeza”, diz Lucía.
Limpeza começou tarde
Na manhã desta quarta-feira, a praia de Madorra tinha quatro trabalhadores da Junta da Galiza a recolher o microplástico. Apesar de os pellets terem chegado à costa de Nigrán a 6 de Janeiro, apenas no dia 10 começou a recolha por parte dos responsáveis. Nesse dia, iniciaram a tarefa às 8h30 e concluíram-na oito horas depois. Mas nada os “impressionou”, diz-nos um dos funcionários. “Não havia nada, tem muito poucos pellets.”
A inacção da Junta da Galiza foi também denunciada, diz o diário El Salto, por autarcas da zona costeira afectada nas rias de Muros e Noia e Arousa, que não receberam qualquer informação oficial até 13 de Dezembro. A 5 de Janeiro, ao Nós Diario, a autarca de Muros, María Lago, queixava-se que “passou um mês e em todo esse tempo não se activou nem um plano de contingência, nem um plano de acção” por parte das administrações responsáveis.
A lentidão também se explica, em parte, pela discussão quanto a culpas entre a Junta da Galiza e o Governo central, organismo que tem a jurisdição sobre o mar. Na televisão, é esta guerra que tem dominado os noticiários, dizem-nos Ángeles e Salvador, um casal que esta quarta-feira caminhava na praia de Patos, a poucos metros da praia de Madorra. São de Vigo, onde, garantem, os microplásticos ainda pouco ou nada se fizeram notar, e viajaram até Nigrán para atestarem o que se diz na televisão. “Bombardeiam-nos com isto há três dias. Mas não vejo motivo de preocupação para se falar tanto disto”, refere Ángeles.
Arma no debate político
Para o casal, o alarido deve-se também à proximidade das eleições autonómicas da Galiza, marcadas para Fevereiro. “Isto está a ser usado como uma arma no debate político”, sublinha Salvador. “Há eleições e atiram-se culpas de um lado e de outro: à esquerda pretendem que isto seja mais do que o que é, e à direita dizem que este plástico não é tóxico, que não se passa nada, quando na realidade nada se sabe sobre este material”, conta Ángeles.
Ambos, no entanto, reconhecem que há um problema e comparam a passividade da Junta da Galiza neste caso e no do Prestige. “Como sempre, a junta ficou quieta, deixou andar e não reagiu, e isso não pode acontecer”, censura Ángeles.
A posição da junta, que não respondeu às perguntas enviadas pelo PÚBLICO, é a de que os microplásticos são aparentemente “inócuos”. Contudo, o presidente do organismo, Alfonso Rueda, do PP, apesar de dizer que comparar este caso ao Prestige é um “autêntico disparate”, reconhece que esta crise pode ameaçar a sua maioria absoluta, admitindo que o PP está a actuar “às cegas” sobre o potencial alcance da situação.
Em nota de imprensa, a junta refere que, já depois de ter declarado na terça-feira o nível de alerta 2 por contaminação marinha, é fundamental interceptar, nesta altura, os sacos de pellets no mar, antes da sua chegada às praias, uma vez que, assim abertos, a recolha das partículas torna-se “muito complicada”. No mesmo documento, o organismo garante que estão actualmente “mais de 200 pessoas a trabalhar na retirada do material” em 30 praias de 22 concelhos.
Certo é que, esta quarta-feira eram apenas quatro os funcionários da junta a recolher o plástico na praia de Madorra, enquanto outros, ironia do destino, ocupavam-se a trabalhar no passadiço de madeira de acesso à praia. Já no areal, onde numa das tábuas se lê “a Xunta mata”, era a labuta e o comunitarismo que se impunham.