Jazmine tem na noite nova-iorquina o seu palco. O estalar de dedos (mais do que as palmas), as luzes e as sombras no rosto, os saltos altos e as quedas perfeitas fazem um dia de trabalho. Aos 21 anos deixou Portugal, apostou tudo nos Estados Unidos e não se enganou. Em poucos meses, o nome Jazmine ascendeu à realeza na capital da arte drag.
Ainda criança, o sonho era outro: ser apresentador de televisão. Em casa da avó Hortense estava montado o estúdio, com lugares para o público, cadeirão para o apresentador, outro para o entrevistado, holofotes. Era uma brincadeira de faz de conta “muito séria”, recorda, em conversa com o P3, Renato Moreira, que também quis ser actor, cantor, dançarino.
Mesmo sem saber, esse “faz de conta” estava intimamente relacionado a interrogações sobre expressão e papéis de género. Pelo menos num primeiro momento, Renato sonhou ser apresentador porque, num programa das manhãs, havia lugar para um homem homossexual que vestia padrões mais arrojados, interpretados como mais femininos, e que era amado pelo público.
Não fosse o sonho da televisão, talvez não tivesse criado o próprio canal de YouTube, não se tivesse filmado numa primeira experiência com arte drag e nunca arriscasse continuar. Foi a partir da casa da família, em Pombal, distrito de Leiria, que conquistou os primeiros milhares de seguidores online, muitos deles brasileiros. Percebeu desde então que a sua maior audiência não seria a portuguesa.
A primeira vez em que usou uma peruca foi para reproduzir um dos visuais da cantora brasileira Pabllo Vittar, que apresentou o single Problema Seu de cabelo livre, leve, solto, rosa. Publicou o vídeo dessa transformação com alguma reticência, mas feliz com o reflexo no espelho.
“Vivia numa cidade muito pequena e comecei a sentir-me sufocado, mesmo em relação à minha expressão artística, não podia ser eu. Então mudei-me para Lisboa e percebi que podia trabalhar como drag queen, havia imensa gente a fazê-lo”, conta Renato ao P3, a partir de Nova Iorque. “Comecei a publicar fotografias de saia e saltos altos e durante algum tempo foi um pouco difícil para a minha família, as pessoas faziam muitas perguntas.”
Com o início da pandemia de covid-19, voltou para Pombal e dedicou-se a fortalecer a própria presença – a presença da Jazmine, identidade artística recentemente criada – nas redes sociais. “Não vou dizer que no início a minha família não estranhou, mas com o tempo perceberam que era sério. Na quarentena trabalhei com dezenas de marcas, algumas realmente grandes. E vinha tudo da minha presença no Instagram. Não era só uma brincadeira.”
Com o apoio de outras artistas, da família e de quem o acompanhava online, essa bolha onde não entrava ódio rebentou com as primeiras entrevistas dadas. “Um dos comentários que li dizia: ‘As nossas crianças vão ver isto e achar que é normal.’ É claro que é normal. Não estou a dizer que toda a gente tem de ser drag queen, mas, se quiserem, não estão sozinhas. Esse é um dos meus principais motivos para fazer drag”, explica. “Também estou cá para mudar mentalidades, de quem nunca viu e de quem acha estranho.”
“Não considero a Jazmine uma outra pessoa. O meu drag sou eu, é uma extensão de mim, só que mais desinibido. Em drag junto todas as minhas formas de expressão artística, a maquilhagem, a moda, tudo”, diz Renato Moreira, 22 anos. A pandemia ajudou a poupar algum dinheiro e o sonho nova-iorquino, “na cidade que mais valoriza a arte drag em todo o mundo”, ganhou vida.
RuPaul’s Drag Race
Depois de breves passagens por Londres e Madrid, além de Lisboa e Porto, atravessou o Atlântico e em Setembro de 2022 instalou-se entre os bairros de Brooklyn e Manhattan. Um ano e meio depois, o voo de regresso a Portugal continua por agendar. “Sempre acreditei muito no meu potencial. E a verdade é que se tive sucesso foi pela imagem que criei nas redes sociais e que me abriu muitas portas.”
Não sendo artista residente em nenhum espaço de diversão, Jazmine actua em discotecas, festas maiores e mais intimistas, mas também nos chamados drag brunch, um evento em que a refeição é animada por actuações de artistas drag. “É cansativo”, admite, “mas o que fez o meu nome crescer tão rápido em Nova Iorque foi também estar todas as semanas num sítio diferente”.
E se há um ano a eventual participação no êxito televisivo RuPaul’s Drag Race ainda pertencia ao mundo dos sonhos e do faz de conta, a entrada nessa corrida está hoje a um passo. A inscrição para a próxima temporada da série apresentada por RuPaul está feita.
“Só terei novidades a partir de Março, são muitos milhares de candidaturas. Gosto muito do meu vídeo [de apresentação], portanto, quem sabe... Se não for agora, é para a próxima, não ponho pressão em mim”, diz, confiante. “Cheguei há um ano e já cresci tanto. Se tiver mais um ano vou aprender a costurar, que é importante para o concurso, vou conhecer mais pessoas. Estou a divertir-me tanto a trabalhar em Nova Iorque.”
No dia em que conversou com o P3, Jazmine preparava-se para a festa de lançamento da nova temporada de RuPaul’s Drag Race, que se estreou a 5 de Janeiro, organizada pelo canal MTV. Nessa noite, acompanhou Mirage, uma das “rainhas” da décima sexta edição do concurso, ainda indisponível nas plataformas de streaming em Portugal. Sob os holofotes dos palcos nova-iorquinos, conta, já trabalhou com outras artistas que o reality show catapultou para o estrelato, como Aquaria, Symone, Gigi Goode, Yvie Oddly ou Jimbo.
Se for escolhida — “aliás, quando isso acontecer”, diz —, Jazmine será a primeira portuguesa a tentar impressionar os jurados de RuPaul’s Drag Race, e uma das primeiras drag queens europeias no programa norte-americano. “No dia em que acontecer, vai ser a loucura. Tudo vai mudar. Estou preparadíssimo.” Para Jazmine, resta um conselho, na voz de RuPaul: “Good luck, and don’t fuck it up.”