E tudo por causa de um divã em Nova Jérsia

Um quarto de século passado, Os Sopranos é uma série canónica — um evento sísmico que mudou não só a televisão, mas toda uma maneira de ver a América.

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James Gandolfini e Edie Falco na série Craig Blankenhorn/HBO/REUTERS
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O que é que nos leva a dizer que “esta”, e não aquela, é a “melhor” obra de todos os tempos? Podíamos estar a falar de literatura, de cinema, de teatro, de artes plásticas, de poesia, enfim, de qualquer tipo de arte ou de produção criativa (mas não, atenção, de “conteúdos”, essa palavra horrível puramente utilitária). Chama-se “cânone” — é uma maneira como outra qualquer de listar o que o tempo foi decantando, o que ficou na memória e o que se foi esquecendo.

Por natureza, o cânone é consensual; e, no entanto, move-se. Durante décadas a fio, O Mundo a Seus Pés, de Orson Welles, foi “o melhor filme do mundo”, mas o mundo deu muitas voltas e já não o é (sem deixar de estar no cânone). Hoje, quando passam 25 anos sobre a exibição do seu primeiro episódio no então canal norte-americano de televisão por cabo HBO, Os Sopranos é uma série canónica ao ponto de constituir, para muitos, a melhor de sempre.

O que implica uma qualificação: a melhor série norte-americana de televisão de sempre. Pelo menos hoje, e por enquanto. Não é preciso ter devorado em tempo real, entre 1999 e 2007, esta ficção criada por David Chase para perceber as suas repercussões sísmicas: colocou no pequeno ecrã um olhar lúcido mas compassivo sobre a América, de um modo que até aí era mais fácil de encontrar no grande ecrã. Não é descabido dizer que pode estar aqui a verdadeira sucessora de um certo cinema dos anos 1960-1970, o de gente como Bob Rafelson, Jerry Schatzberg, Hal Ashby, Robert Mulligan, Mike Nichols, numa daquelas “perturbações genéticas” que fazem certos traços característicos saltar uma geração (ou, no caso, um formato). E quando falamos da linhagem que Os Sopranos iniciaram, estamos a falar de séries como Boardwalk Empire, Breaking Bad, Mad Men, Sete Palmos de Terra, The Wire — os grandes dramas televisivos sobre uma América que descobria ter acreditado em excesso no seu próprio sonho.

A série sobre o mafioso Tony Soprano e a sua entourage radiografava o mal-estar da mudança de século: a vitória da sociedade de consumo, do conforto suburbano de uma classe média que se constituía, no mercado do estatuto social, como alternativa às elites aristocráticas urbanas... e para a qual, no entanto, making itnão chegava para apagar uma sensação de perda, de ausência, de vazio. Is that all there is?, cantava Peggy Lee em 1969, e as seis temporadas de Os Sopranos insistiram na pergunta sem realmente obter uma resposta. Com o engenho de transformarem o que parecia uma piada — “um padrinho da máfia no divã do psiquiatra” — numa revelação existencial: os “maus da fita” também questionam o que fazem, também sonham mudar de vida, também vêem O Gladiador, também têm mães que lhes põem a cabeça em água. Em suma, também têm famílias e problemas como qualquer um de nós.

Todos conseguíamos rever-nos em Tony Soprano e no seu clã com o qual não conseguia viver e sem o qual não conseguia viver: a esposa Carmela, os filhos Meadow e A. J., a irmã Janice, a mãe Livia, e ainda Chris, Adriana, Silvio, Paulie Walnuts. Sem esquecer a psicoterapeuta Jennifer Melfi, que funcionava como “alter ego” do espectador, tão fascinada e horrorizada como nós perante a proximidade ao desastre em câmara lenta da vida de um mafioso no século XXI. Um mafioso nostálgico de um código de honra que talvez só tenha existido nas ficções que o sucesso de O Padrinho (primeiro livro, depois filmes) fez explodir.

É uma “ponte” com esses tempos da “nova Hollywood”: O Padrinho original, estreado em 1972 e hoje parte do “cânone”, foi dirigido por Francis Ford Coppola em permanente contrapé com o estúdio, e sobretudo para saldar as dívidas da sua produtora, mas o sucesso que obteve escancarou as portas quer às ambições da geração de que fazia parte, quer à progressiva sedução dessa geração pelo "sistema". Pouco mais de 25 anos depois, em 1999, David Chase fazia a reinterpretação possível do mafioso para os novos tempos da televisão por cabo, onde a liberdade criativa estava mais próxima desse cinema americano, e cujo público era precisamente aquele que crescera a vê-lo. Não que não houvesse uma dimensão “adulta” na televisão em sinal aberto; só que, no cabo, não eram precisos eufemismos ou elipses ou preocupações etárias, e Os Sopranos podiam ser tão violentos como o cinema.

Não foi o acaso que ditou que coubesse a Os Sopranos confirmar, de uma vez por todas, que a televisão não tinha de ser “o cinema dos pobres” nem o “prémio de consolação” daqueles que não tinham sido capazes de singrar na sétima arte ou que tinham ficado para trás; foi a sua forma de contar histórias com regras próprias, identidade própria, fraquezas e forças que não tinham de ficar à sombra do cinema. Ao ponto de, 25 anos depois da sua estreia, e 17 anos depois do seu fim, podermos dizer que um dos cinemas que Hollywood fazia antes de Os Sopranos se mudou, de armas e bagagens, para a televisão, com todas as perdas e todos os ganhos que isso implica.

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