Os dentes da frente

Os raios de sol forçavam os cortinados e enchiam a casa que a Alexandra herdara de uma tia, juntamente com um reformado das Finanças que viveu com ela durante a última década e que a tia hospedava por caridade em troca de serviços domésticos. O apartamento ficava num segundo andar, não muito longe da Baixa.

O Calvo, assim se chamava o homem que veio com a herança, não tinha dentes da frente. Dizia tê-los perdido num combate de boxe, o que era inverosímil para um contabilista, mas um vizinho garantia ter sido num jogo de snooker. Lembro-me muito bem, disse o vizinho, o Calvo abaixou-se para ver o buraco e o ângulo da coisa, olhos rente à tabela, quando o adversário, um sapateiro cheio de força, não era cá de meias-solas, mandou uma paulada na branca com tal viço que ela foi direita aos beiços do Calvo, bem, direita mais ou menos porque ainda ressaltou na sete, voou um palmo acima do pano antes de lhe arrancar os incisivos. A tacada ficou conhecida entre a gente como “a dentista”.

Por causa desse acidente, era difícil perceber o que dizia. A filha da São, a Ana, gostava muito dele e muitas vezes servia-lhe de intérprete, era a única que o compreendia à primeira. Os amigos chamavam-no Hã, porque era o que mais se dizia quando ele falava: hã?

A São voltou a trabalhar e, por sorte, segundo ela, na mesma empresa onde trabalhara antes de se casar. Afinal, era possível ser mãe e trabalhar: a Alexandra tinha razão. Contudo, o contacto com a filha era tímido, tinha medo de a perder, evitava entregar-se totalmente. A vida era, para a São, uma fera sempre pronta a atacar, que se escondia numa onda qualquer, na chuva, numa torneira, na água do poço, e levava-lhe tudo. Ainda tinha pesadelos com a mãe, roubada da sua infância pelo mar, ainda acordava a meio da noite depois de sonhar com um rosto num poço ou com o sorriso perfeito do cadáver da sua amiga, a Glória, ainda sonhava com uma boneca de papel.

Os raios de sol forçavam os cortinados e enchiam a casa. O Calvo entrou na sala e perguntou se a Alexandra queria um chá. Hã?, perguntou a Alexandra.

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