Já não era sem tempo: ao fim de mais de dois anos de versões preliminares e duas consultas públicas, a Estratégia para o Combate à Pobreza Energética 2023-2050 foi publicada, esta segunda-feira, em Diário da República. A principal meta: “erradicar a pobreza energética em Portugal até 2050, protegendo os consumidores vulneráveis e integrando-os de forma activa na transição energética e climática, que se pretende justa, democrática e coesa.”
A resolução de Conselho de Ministros tinha sido aprovada em Novembro e já na altura anunciava que, até 2030, Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética (ELPPE) 2023-2050 propunha reduzir de 17,4% para 10% a percentagem de portugueses sem capacidade de aquecer a casa no Inverno.
“É um passo no reconhecimento do problema em Portugal”, celebra João Pedro Gouveia, do Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade (Cense), da Universidade Nova de Lisboa. Portugal já começou a fazer caminho nesta matéria com a Estratégia de Longo Prazo para a Renovação dos Edifícios (ELPRE) e o Roteiro para a Neutralidade Carbónica. Mas “ficamos agora com a visão e o reconhecimento público do Governo de que temos um problema”, reforça o investigador, que participou nas discussões iniciais da elaboração do documento, ainda antes de haver um rascunho.
Tal como acontece com outras estratégias de longo prazo, que traçam as grandes linhas de actuação, o próximo passo será colocar a ELPPE no terreno: em breve será criado o Observatório Nacional de Pobreza Energética (ONPE-PT), presidido pela Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), que terá entre os seus primeiros desafios a elaboração dos Planos de Acção para o Combate à Pobreza Energética decenais, o primeiro dos quais tendo como horizonte 2030 (recorde-se que as consultas públicas desta ELPPE começaram já no início da década).
Sim, mas como?
Antes de propor soluções, a ELPPE traça um diagnóstico dos grandes problemas do parque habitacional português: 1,8 milhões de pessoas (17,5% em 2020) vivem em habitações sem capacidade para manter a casa adequadamente aquecida; 3,7 milhões (35,7% da população em 2012) vivem em habitações que não se mantêm confortavelmente frescas no Verão; 2,5 milhões (25,2% em 2020) vivem em habitações com problemas de infiltrações, humidade ou elementos apodrecidos; mais de 1,2 milhões de agregados familiares (três milhões de pessoas em 2016) têm despesas de energia que representam mais de 10% do total dos rendimentos; e 69,6% dos edifícios de habitação têm classe energética C ou inferior (dados de 2020).
João Pedro Gouveia nota que nem sempre foi levado em conta o valor mais actual nestes indicadores, mas a falha mais desafiante é mesmo a falta de informação sobre como se espera atingir os resultados propostos nos prazos indicados. Por exemplo, em que se baseia a proposta de reduzir de 17,5% para 10%, até 2030, a proporção de pessoas que não conseguem aquecer a casa no Inverno? “Detalhou-se quais são os financiamentos e programas que existem em Portugal, fala-se de algumas coisas que já estão a ser implementadas, mas não há uma avaliação efectiva ex ante desse potencial de evolução.”
Esta fragilidade já tinha sido identificada na fase de consulta pública, com o alerta de que as metas devem ser medidas em ganhos concretos, e não em números avulsos que podem não se traduzir em ganhos efectivos no bem-estar das pessoas. Com o processo de publicação da estratégia já bastante atrasado, fica então a encomenda feita para a equipa que vai elaborar o plano de acção: mais clareza sobre como é que determinadas políticas vão ajudar efectivamente a cumprir determinado objectivo.
Problema sem fim?
Tendo em mãos uma estratégia de longo prazo, com objectivos até 2050, como escolher as prioridades para começar esse caminho de forma eficaz? “A prioridade deve ser a eficiência energética”, reforça o investigador, com uma aposta na componente passiva do edificado, como o isolamento térmico ou a substituição de janelas. E o que será melhor: manter os actuais apoios para mitigação de situações pontuais, como o Vale Eficiência, ou apostar em medidas mais estruturais? “A ambição tem que ser nos dois caminhos”, nota João Pedro Gouveia. “Da mesma forma que os indicadores não cobrem toda a gente, não há uma política ideal nem um financiamento ideal.”
Aliás, a própria heterogeneidade das situações de pobreza energética aconselha a que as medidas sejam diversas. Agora que a ELPPE reconhece que a pobreza energética resulta de uma combinação de factores (financeiros, mas também de saúde, ambientais e sociais), é preciso também que o sistema de identificação de pessoas vulneráveis não fique “agarrado ao rendimento” – a tarifa social de energia, exemplifica, tem só perspectiva económica.
Membro do Centro Europeu de Aconselhamento sobre Pobreza Energética (EPAH), o investigador João Pedro Gouveia nota ainda que o Governo escolheu alinhar a definição de “pobreza energética” com a recomendação europeia, espelhando a recém-publicada Directiva de Eficiência Energética, ao invés de ter uma “definição portuguesa”. Continua a ser, contudo, uma definição “abrangente o suficiente”, alinhada com os quatro eixos estratégicos de actuação: a promoção da sustentabilidade energética e ambiental da habitação, o acesso universal a serviços energéticos essenciais, a acção territorial integrada e também o conhecimento e actuação informada.