Combate à poluição dos carros não pode esquecer que há “pobreza de mobilidade” nalgumas regiões

Relatório da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes traça soluções para a transição ecológica no sector dos transportes, com particular atenção às populações e territórios mais vulneráveis.

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JOSÉ COELHO/LUSA
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Já ouviu falar em “pobreza de mobilidade”? A Autoridade da Mobilidade e Transportes quer que o conceito seja integrado na gestão da mobilidade sustentável, de acordo com um relatório que propõe recomendações para um futuro sustentável para os transportes públicos.

No estudo “Obrigações de Serviço Público Verdes”, dedicado aos desafios da transição ecológica no sector dos transportes, a AMT mostra-se particularmente atenta à “pobreza de mobilidade”, causada por factores como a conjugação de baixos rendimentos, elevados custos de combustíveis ou a falta de transportes acessíveis, um problema que pode afectar particularmente quem vive nas zonas rurais, insulares, periféricas e remotas — em geral, menos acessíveis — ou em territórios menos desenvolvidos.

O relatório foi apresentado no início de Dezembro na COP28, a conferência do clima das Nações Unidas, e será oficialmente apresentado em Portugal na terça-feira, na conferência sobre “contratos de serviço público de passageiros de 1.ª geração”.

O diagnóstico feito pela AMT é já conhecido: em 2021, os transportes representavam em Portugal 28,2% das emissões de gases com efeito de estufa. “Ao contrário de outros sectores cujas emissões têm tido uma tendência decrescente ou estável, este sector tem visto as suas emissões subir”, alerta a entidade.

E, contudo, há uma enorme falta de dados mais finos, sendo difícil apurar o contributo de cada um dos investimentos para esta “descarbonização” (redução das emissões de dióxido de carbono, o principal “vilão” das alterações climáticas), o desempenho de projectos específicos em relação às metas definidas ou o financiamento necessário para alcançar essas metas. Em consequência, fica também por saber se os Estados e as empresas têm capacidade para, de facto, suportar os encargos necessários, ou sequer “em que fase do caminho estamos, para cada modo, serviço e infra-estrutura, para alcançar tais metas.”

A solução passará por submeter as entidades de mobilidade e transporte de mercadorias e passageiros a um quadro comum para calcular as emissões de GEE no transporte — quadro que, neste momento, ainda não existe. A Comissão Europeia já fez a sua proposta nesse sentido, sob o nome “CountEmissions EU”, que ainda tem de ser avaliada pelo Parlamento Europeu antes de se iniciarem as negociações com os Estados-membros. Essa uniformização é necessária, entre outros motivos, para evitar o chamado greenwashing, já que metodologias feitas à medida “criam condições para a ecomaquilhagem e pode transmitir falsos incentivos aos utilizadores”, descreve o documento da AMT.

Mas não é só nas emissões que estamos a falhar: também não há ainda modelos uniformes de avaliação dos investimentos e do desempenho dos serviços e infra-estruturas. Ou seja, é preciso também harmonizar a forma como medimos, de forma concreta, se as medidas tomadas estão a resultar para os utilizadores (tendo em conta, claro, não apenas a questão financeira, mas também factores ambientais). O relatório menciona também os próximos passos, estando previstos estudos sobre “transporte flexível e mobilidade em regiões de baixa densidade” e “os desafios da descarbonização no transporte marítimo e nos portos”.

Além das áreas urbanas

A AMT propõe a reformulação dos actuais Planos de Mobilidade Urbana Sustentável (PMUS), “rebaptizados” para Planos de Mobilidade Sustentável (PMS), com uma abrangência mais vasta do que os espaços urbanos, e a criação de um Programa Nacional para a Mobilidade Sustentável (PNMS), que poderá também incluir os planos directores municipais (PDM) e outros planos sectoriais, como os da habitação, actividades económicas, infra-estruturas e serviços.

Mas a “descarbonização” dos transportes deve ser feita tendo em conta as realidades locais. À semelhança do que acontece entre os Estados-membros, a AMT recomenda a introdução de um mecanismo de “repartição de esforços” (effort sharing), definindo os objectivos no âmbito de “cada território, empresa ou modo”, tendo em conta diferentes factores, como “as diferenças em termos de capacidade económica, a qualidade do ar, a densidade populacional, as características dos sistemas de transporte, as políticas em matéria de descarbonização dos transportes e redução da poluição atmosférica”.

As empresas também são convidadas a adoptar planos de transporte sustentável para o trabalho, que deverão ser obrigatórios para entidades públicas e privadas com determinado número de trabalhadores, mas poderão também significar incentivos fiscais para as que os adoptem voluntariamente. Podem, por exemplo, oferecer passes sociais ou vales para serviços de mobilidade, ou promover a instalação de estruturas de carregamento de veículos limpos.

Sem mencionar directamente o Imposto Único de Circulação (IUC), cujo eventual aumento tanto causou polémica na aprovação do Orçamento do Estado para 2024, o relatório menciona que “na aplicação de taxação mais penalizadora a veículos mais poluentes deverá ser acautelada uma discriminação positiva dos cidadãos com rendimentos mais baixos e residentes em zonas de baixa densidade, com menor oferta de transporte público e onde não existam infra-estruturas facilitadoras” (como redes de carregamento eléctrico e locais de abastecimento).

“Obrigações ambientais”

Uma das principais medidas defendidas pela AMT são as “obrigações de serviço público verdes”, ou seja, garantir que os futuros contratos de serviço público de transportes de passageiros passem a prever um conjunto de obrigações ambientais “mais objectivas em termos de sustentabilidade ambiental e climática”.

A proposta da entidade reguladora é que a Estratégia Nacional para Compras Públicas Ecológicas seja estendida a todas as entidades públicas. Ou seja, ao invés de terem em conta apenas critérios orçamentais, os contratos para o transporte rodoviário, por exemplo, poderão incorporar “critérios de contratação ecológica”, tais como a adopção de frotas com tecnologias de baixas emissões e medidas de gestão ambiental.

Uma vez mais, a AMT recomenda que se procure melhorar o acesso ao sistema de transportes públicos em zonas de baixa densidade ou outras que, devido à procura reduzida, são menos atractivas para o investimento.

Como financiar?

O transporte público de passageiros não gera receitas suficientes para cobrir a totalidade dos seus custos operacionais, reconhece o relatório. Quem irá, então, pagar os custos desta descarbonização? A AMT sugere algumas alternativas, como a cobrança de taxas aos “beneficiários indirectos”, como são as empresas, que beneficiam quando os trabalhadores têm acesso ao transporte público. Em França, por exemplo, existe o Versement Mobilité, uma taxa paga à Segurança Social pelas empresas que empregam mais de 10 trabalhadores, que é depois distribuída às autoridades de transportes locais.

Por outro lado, é preciso também aplicar o princípio do “poluidor-pagador” de forma mais coerente, cobrando as emissões de carbono de forma mais uniforme para incentivar a transição. Uma das recomendações é introduzir taxas dinâmicas nas portagens das auto-estradas, para que os preços não considerem apenas a distância percorrida, a altura e o número de eixos dos veículos, mas também as emissões. Isto, claro, diferenciando as áreas metropolitanas de outras regiões com menos alternativas disponíveis.

Nas cidades que excedam os limites de poluição do ar, a proposta é a criação de zonas de baixas emissões, incentivando a utilização de transportes públicos ou de veículos “limpos” nas áreas urbanas - tendo em conta, “naturalmente”, que existem alternativas viáveis à mobilidade das pessoas.

A mobilidade multimodal também deve estender-se a distâncias mais longas: o planeamento a nível nacional deve ter em conta o objectivo de reduzir progressivamente (e sempre que existam alternativas) as viagens aéreas programadas de menos de 500 km.

“Pobreza de mobilidade”

Ao longo do relatório, é sempre sublinhado que é preciso ter cuidado com “medidas restritivas, sobretudo de âmbito fiscal”, para que não gerem taxas de esforço desproporcionais, em particular sobre grupos mais vulneráveis ou microempresas.

Para aumentar a atractividade dos transportes públicos, propõe-se uma diversificação dos tarifários: além dos habituais títulos mensais ou de uma utilização, pode-se criar passes ajustados à situação de trabalhadores em regime parcial de teletrabalho (para incentivar a utilização de transportes públicos nos dias de trabalho presencial), incluir formas de mobilidade partilhada nos passes sociais e também promover o uso do transporte público flexível e a pedido (de forma “tendencialmente gratuita”) em áreas de baixa densidade.

Por fim, e regressando ao início, o relatório insiste que é preciso garantir uma transição justa através da inclusão do conceito de “pobreza de mobilidade” no quadro legal, para evitar que as medidas tomadas para descarbonizar o sector se traduzam na diminuição do acesso aos transportes e, por consequência, a “actividades e serviços essenciais, como o emprego, a educação ou os cuidados de saúde, em especial para as pessoas e as famílias vulneráveis”.