Nuno Banza: “Não podemos ter um polícia por cada português, nem uma lancha para cada navio”
No início de Dezembro, durante a COP28, Nuno Banza, presidente do ICNF, falou sobre as contradições entre promessas de conservação da natureza e a expansão de investimento económico em terra e mar.
Na recente cimeira do clima das Nações Unidas, que teve lugar no Dubai, as atenções na imprensa focaram-se na grande batalha semântica sobre o fim da era dos combustíveis fósseis. Mas a COP28 marcou também passos importantes em matéria de protecção da biodiversidade, no rescaldo de uma cimeira da biodiversidade que, no final de 2022, tinha trazido novas metas para as áreas protegidas no mundo: 30% de área protegida marinha e terrestre até 2030.
“As questões específicas da biodiversidade — a perda da biodiversidade, a depleção dos recursos, a exploração justa e sustentável, o restauro — são efectivamente desafios que estão em cima da mesa para toda a gente”, sintetizou Nuno Banza, presidente do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), em entrevista ao Azul, no início de Dezembro, no Dubai.
Portugal já conseguiu atingir o seu objectivo de classificar mais de 30% da área terrestre, e na cimeira do clima veio anunciar que conseguirá atingir o objectivo de 30% da área total (incluindo a enorme área marinha) até 2026. “Aumentarmos a nossa área protegida é, no fundo, a grande conquista”, afirmou Nuno Banza, comentando os resultados que o país veio mostrar na COP28.
Contudo, nem tudo são rosas. O país continua sem planos de gestão das áreas protegidas da Rede Natura 2000 (que deveriam estar prontos há mais de dez anos), mas que Nuno Banza garante estarem quase prontos. Os leilões para exploração de energia eólica offshore vão coincidir com este esforço do Governo para classificar áreas marinhas, prevendo-se debates difíceis sobre o equilíbrio entre a conservação da Natureza e a expansão da actividade económica.
Ainda temos dificuldade em gerir as áreas protegidas, os planos de gestão não estão sequer feitos. Qual é o plano para aprovarmos mais áreas e cuidarmos delas? Vai haver dinheiro para isso?
O dinheiro faz sempre falta, há coisas que não se fazem sem dinheiro. Mas há coisas que, se não se fizerem, não será por falta de dinheiro. De uma forma quase inexplicável, durante anos andámos a incumprir o compromisso com Bruxelas de fazer planos de gestão para a Rede Natura 2000. Nuns casos em 2010, noutros em 2012, tínhamos de ter prontos os planos de gestão. Começámos [só] em 2019 a fazer os planos a sério.
Depois veio a covid, outros problemas, mas neste momento, dos 60 planos, 30 já têm discussão pública feita, estão prontos a ser aprovados. Temos metade praticamente pronta. E a outra metade a concluir agora. Hoje consigo dizer que numa hipótese tranquila em meados do ano que vem temos os planos todos prontos.
Mas continuam a ser definidos determinados projectos para lugares onde, obviamente, não deviam ter sido...
Não é bem assim, veja o exemplo da Secil dentro do Parque da Arrábida. Alguém acha que agora vou fazer uma bola à volta da Secil e dizer isto não é parque? Não, por uma razão simples. Estar dentro do parque também a responsabiliza, também implica um conjunto de compromissos que não teria se não estivesse dentro do parque.
E estamos a conseguir cobrar esses compromissos?
Estamos, claro que estamos. Eles têm planos de recuperação... Vamos lá ver. Não está tudo bem. Nós temos um país que não tem médicos nos centros de saúde, não tem professores nas escolas. Se eu viesse dizer aqui que na conservação da natureza está tudo perfeito, iam dizer que estava doido. Não está tudo bem, mas também não está tudo mal. Se olhar para esse caso, o desempenho da Secil, tem uma comissão de acompanhamento onde os habitantes estão representados, vale a pena ver o trabalho de recuperação paisagística. Não fazem mais do que a obrigação deles, mas têm gasto milhões. Há aqui várias questões que também não são como as pintam.
Não é algo que acontece sem obrigações...
Eles têm regras para cumprir e cumprem-nas. Isso não impede que haja problemas, como em qualquer lado. Vivemos num país que tem dificuldades, tem problemas e esses constrangimentos são reais. Está tudo bem? Não, não está nada tudo bem. Mas também não é verdade que não estejamos a fazer nada, ou que esteja tudo a acontecer à maluca em todo o lado. Isso não é verdade.
A AICEP tem um mapa onde futuros investidores podem escolher terrenos e, no caso de Sines, aquele pedacinho acima da central estava lá como um sítio para investimento. Como é que conseguimos evitar essas contradições?
Nós temos duas realidades, antes das go-to areas e depois das go-to areas. Precisamente por causa dessa dificuldade, chamámos a Associação Portuguesa de Energias Renováveis [APREN], a Direcção-Geral de Energia e Geologia [DGEG], o Laboratório Nacional de Energia e Geologia [LNEG] e a Agência Portuguesa do Ambiente [APA] e dissemos que, de uma vez por todas, tinham de identificar as nossas restrições: Rede Natura 2000, áreas protegidas, regime florestal, áreas de montado de sobro, Convenção de Ramsar (Convenção sobre as Zonas Húmidas de Importância Internacional).
Isto foi quando?
Há um ano e tal. Foi publicado há menos de seis meses. Dissemos que, ou tinham as nossas restrições em atenção desde o início do licenciamento, ou então nunca mais conseguiam licenciar nada, porque vamos estar sempre a dizer que não. E continuamos a dizer que não, mesmo até fora [de zonas protegidas]. Queremos é que olhem para o território e que eles próprios escolham os sítios afastando-se das áreas com potencial de conflito com a conservação. O que as go-to areas vão fazer é isso.
Quando é que isso vai entrar em funcionamento?
O LNEG, que acabou por fazer o trabalho todo, já tem um primeiro esboço publicado. Entretanto, à boleia do RepowerEU, a Comissão Europeia veio dizer que estávamos obrigados a simplificar os procedimentos administrativos. Se não estiver em Rede Natura 2000, em áreas protegidas, em zonas com habitat, com sobreiros, à partida vai haver muito menos conflitos do que se forem fazer isto num sítio de habitat de lobo, em cima de sobreiros ou em cima de uma espécie protegida ou de um parque natural. É muito mais fácil. Claro que eles aproveitaram, e bem. Agora, dentro das go-to areas podem fazer tudo o que lhes apetece? Não. Têm de fazer a avaliação de impacto ambiental, mas têm a garantia de que, à partida, já não vão ter as mesmas dificuldades que tinham nas outras áreas que estão identificadas. E só isso é um ganho enorme.
Passamos para o mar. Que meios temos para delimitar e gerir as áreas marinhas protegidas?
Nas áreas marinhas, é preciso separar o mar territorial da plataforma estendida. O mar territorial são as 12 milhas à volta do polígono, do rectângulo. Nessas 12 milhas à volta do rectângulo já temos mais de 40% de área classificada.
Os leilões de eólicas offshore caem dentro dessas áreas classificadas?
Uns caem dentro, outros caem fora.
Como é que estamos a acautelar esses conflitos com a questão económica, que é necessária também?
É sempre um equilíbrio de interesses.
Como é que vamos resolver quando chegar a altura de escolher?
Tem de se ponderar, porque eles estão classificados por razões diferentes. Por exemplo, classificámos áreas para o boto em que os especialistas dizem que não há um impacto relevante no boto. Pode até haver um impacto positivo, porque os cambalhões que são criados para suportar as torres geram pequenos recifes artificiais que representam zonas de defesa para os peixes, para os crustáceos e para as algas, e que lhes permitem criar zonas de alimentação. Nem tudo é mau.
Pode ter externalidades positivas?
Exactamente. Aqui há uns anos, eu ainda estava na inspecção [Inspecção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT)] e a Marinha teve aqueles quatro navios que afundaram ao largo de Portimão. Ninguém queria licenciar aquilo e acabámos por ser nós a licenciar. Fizemos uma coisa simples: obrigámos a descontaminar os barcos todos, tirar o óleo, as baterias, madeiras, fibras de plástico, tudo. Foram rebocados até lá e foram afundados. Hoje vamos lá e aquilo é espectacular, em cada barco daqueles tem um recife cheio de peixes, cheio de plantas.
Esta experiência da Pedra do Valado tem uma coisa que há muitos anos não existia. Nos anos 1970 e no início dos anos 1980, quando foram criados alguns parques e reservas, alguns presidentes de câmara só souberam que os seus concelhos estavam abrangidos quando aquilo foi publicado em Diário da República. Criavam-se áreas por decreto: isto agora é tudo um parque natural. Alguns presidentes nem sabiam que o próprio concelho ia estar dentro de um parque natural.
Hoje temos Rosa Palma, presidente da Câmara de Silves, que apoiou a criação da reserva, e ao lado dela Manuel João, que é um pescador de Armação de Pêra que defendeu a criação da reserva e explicou aos outros pescadores que vamos proteger aqui porque o peixe vai-se espalhar para as áreas à volta e a malta pesca à volta. Isto era completamente impossível de conseguir há 20, 30, 40 anos. Este processo tem um mérito que precisamos de enaltecer.
Mas diz isso e a seguir temos consultas públicas em que os contributos não são integrados.
Este processo permite-lhe ilustrar que sentar todas as partes interessadas à mesma mesa e chegar a um compromisso favorável para a conservação não é uma quimera. Não é uma abstracção ou uma excentricidade que só está nos livros.
É preciso vontade política, dinheiro.
Precisa de vontade política, precisa de dinheiro, precisa de inteligência e de informação do lado dos pescadores, precisa de bom senso. A presidente da Câmara [de Silves, Rosa Palma] foi eleita pelo PCP/PEV, o Governo é socialista, mas foi possível. E se é possível, são estes exemplos que a gente tem de usar para mostrar às pessoas: "Sentem-se, conversem uns com os outros." Se tiverem a coragem de se sentar e conversar, será possível encontrar uma solução favorável para a conservação.
Em que é que a gestão é diferente para a plataforma estendida?
Temos de separar o que é o mar territorial, que são as 12 milhas, e o que é a plataforma estendida. Nenhum português diz que temos mar a mais, mas temos de ter consciência de que a nossa jurisdição no mar é brutal, uma área de milhões de quilómetros quadrados, muito maior do que a jurisdição terrestre. A solução é dizer que, como não se consegue controlar, o melhor é entregar? É claro que a solução não é essa.
O que é importante é conseguirmos garantir a identificação dos valores através de expedições, trabalhos científicos, recensão bibliográfica, registos. Além de promover a identificação dos valores, promover a delimitação, porque a própria delimitação traz ao conhecimento público a verdadeira razão pela qual se está classificar aquela zona. E depois tem de haver, de facto, medidas. Mas todos nós sabemos que as medidas que são tomadas em alto-mar, a 100 km, 150 km, 500 km da costa, não são as mesmas medidas que tomamos aqui, porque também não tem lá pessoas, não tem exploração de recursos, fábricas, estradas, aeroportos.
Mas temos ecossistemas. Estamos sempre a ceder nesse aspecto.
Na Pedra do Valado, tal como se fez no Parque Marinho Luiz Saldanha, conseguiu-se garantir condições, tem vigilantes, tem barcos, está próximo da costa, consegue controlar a pesca. Com medidas de conservação activas, consegue garantir a preservação dos recursos. Também tem muito mais pressão, porque, como está muito perto da costa, está perto das pessoas, tem muito mais actividades económicas, muito mais coisas a acontecer.
Em offshore, é um compromisso. É preciso fazer esse trabalho para saber quais os valores que existem, porque há muitas coisas que nós nem sequer conhecemos. É um compromisso entre fazer o trabalho, investir, publicar, delimitar e classificar, e depois definir medidas que sejam exequíveis, que vão passar muito por acordos entre os diferentes stakeholders, os armadores... Hoje já todos os navios de grande porte têm um GPS que permite que se saiba permanentemente onde eles estão. Sabendo onde estão, sabendo quanto tempo é que passam naqueles sítios, sabemos se estão dentro ou fora de uma área classificada. É um compromisso diferente.
Temos forma de fazer isso?
Temos de ter.
De forma eficaz?
Vamos ver. Há muita pressão sobre as embarcações. A questão é saber se essa pressão é dissuasora ou se temos de encontrar um compromisso alternativo em que nos sentamos à mesma mesa e assumem o compromisso de que não vão pescar para ali.
E estamos a conseguir?
Estamos a trabalhar nisso. Hoje sabemos muito mais do que se sabia antes, muito mais. Hoje sabemos onde é que os barcos estão 24 sobre 24 horas, barcos filmados, observadores independentes dentro dos próprios barcos. Isto não quer dizer que corra tudo bem, não quer dizer que não continue a haver bycatch [captura acidental], que não haja às vezes bycatch que quase parece pesca dirigida, face às quantidades.
Estamos melhor ou estamos pior do que estávamos antes? Nós acreditamos que estamos muito melhor, porque, como agora percebemos as dinâmicas, conseguimos intervir, e esse facto faz com que tenhamos muito mais probabilidade de vir a ser bem-sucedidos nas medidas de conservação, que é, no fundo, o que andamos à procura. Isto nunca pode ser o jogo do gato e do rato, não podemos ter um polícia por cada português, nem uma lancha para cada navio. Isso não existe, nem em Portugal nem em lugar nenhum do mundo.