Cerca de 75% de todos os navios de pesca industrial não são rastreados publicamente, indica um estudo científico publicado nesta quarta-feira na revista Nature. O artigo, que identifica os “pontos cegos” do mapa global das embarcações marítimas, revela ainda que um quarto dos navios de transporte e energia também não é monitorizado.
“Foi uma surpresa para mim descobrir tanta actividade pesqueira industrial no oceano que não conhecíamos, cerca de 75%, o que é praticamente a maior parte! Repetimos a análise e os resultados várias vezes para nos convencermos de que esse número estava certo. Outra descoberta surpreendente foi a extensão dos projectos petrolíferos em alto-mar. Existem infra-estruturas petrolíferas por todo o lado e o tráfego de navios que as apoia estende-se por quase todo o oceano”, explica ao PÚBLICO Fernando Paolo, o primeiro autor do estudo.
Uma equipa do Global Fishing Watch, uma organização não-governamental dedicada à sustentabilidade do oceano, analisou cerca de 2000 terabytes de imagens de satélite recolhidas entre 2017 e 2021. Para termos uma vaga ideia do gigantesco volume de informação em causa: um terabyte equivale a 1000 gigabytes, permitindo armazenar cerca de 300 mil fotografias.
“Seriam necessários cerca de 2000 computadores portáteis para armazenar todos esses dados em discos rígidos — mas isso foi possível porque recorremos à computação em nuvem. Esse esforço exigiu escrever uma enorme quantidade de código informático, gerir múltiplas fontes de informação, rotular dezenas de milhares de amostras e acompanhar numerosos testes. Avaliar os resultados em escala global exigiu uma equipa multidisciplinar, desde especialistas em inteligência artificial até cientistas marinhos”, compara Paolo.
Pesca ilegal
O oceano cobre mais de 70% da superfície terrestre, sendo que os cientistas só se debruçaram sobre 15% desse total — uma porção pequena, mas que abriga mais de 75% da actividade industrial fora da costa. As conclusões do trabalho mostram uma alta concentração de pesca ilegal na costa norte-africana e a oeste da península coreana.
“O nosso estudo mostra a extensão das principais actividades industriais no mar, sendo a pesca, de longe, a indústria oceânica com maior actividade sem monitorização. Com o conjunto de dados e a tecnologia disponíveis hoje gratuitamente, os pontos críticos de actividades potencialmente ilegais podem agora ser revelados numa escala global e acessível a qualquer nação, sendo ainda possível identificar os navios de pesca industrial que estão a invadir a área de barcos artesanais ou as Zonas Económicas Exclusivas de outros países”, escrevem os autores na conclusão do estudo da Nature.
Fernando Paolo sublinha que, quando se trata da gestão do oceano, existe uma grande verdade: “Não podemos gerir o que não podemos ver.”
“A maior parte do oceano está oculta e não mapeada — é um mundo desconhecido. E, sem uma imagem abrangente do que se passa para além do nosso horizonte, estamos impotentes, não conseguimos operar mudanças significativas. Agora, temos os dados e a tecnologia para mapear toda a actividade humana no oceano, podemos ver quais as áreas que requerem a nossa atenção urgente”, escreveu o investigador numa resposta por email.
Aprendizagem profunda
Fernando Paolo e dois co-autores desenvolveram três redes neurais de aprendizagem profunda (deep learning, em inglês) capazes de reconhecer objectos “mergulhados” num manancial de informação. A aprendizagem profunda é um método que utiliza redes neuronais artificiais que imitam a forma como o cérebro humano elabora e consolida conhecimentos.
O processo de aprendizagem profunda permitiu, neste trabalho, não só identificar objectos com mais de 97% de precisão, mas também classificá-los como infra-estruturas marítimas, navios pesqueiros ou embarcações não destinadas à pesca.
“As actividades humanas no mar envolvem o uso de estruturas imóveis, como plataformas petrolíferas, e objectos móveis como os navios pesqueiros. Até agora, não havia um mapa completo e global destes diferentes tipos de infra-estruturas marítimas”, escrevem os investigadores Konstantin Klemmer e Esther Rolf, num artigo de análise publicado na mesma edição da Nature.
A enorme quantidade de navios sem qualquer tipo de monitorização deve-se ao facto, refere a nota de imprensa da Nature, de as embarcações não estarem obrigadas a transmitir as próprias coordenadas ou mesmo de os governos não partilharem publicamente as localizações das mesmas. Há também, refere o documento, quem queira propositalmente manipular ou esconder dados que permitam rastrear uma actividade marítima ilegal.
“Os resultados encontrados mostram que as estimativas anteriores, baseadas nos dados incompletos que estavam disponíveis na altura, subavaliaram significativamente a extensão das operações de pesca em regiões como o Sul ou o Sudeste asiático”, escrevem Klemmer e Rolf no comentário da Nature.
Turbinas eólicas superam plataformas
A localização das infra-estruturas de gás, petróleo ou energia eólica no alto-mar, por sua vez, é normalmente mantida em sigilo, uma vez que tais equipamentos costumam ser estratégicos para os países, estando associados à soberania energética.
Os investigadores identificaram 28 mil unidades de infra-estrutura marítima no final de 2021, sendo 48% e 38% correspondentes à energia eólica e à produção de petróleo, respectivamente. As turbinas eólicas, neste momento, já ultrapassam o número de estruturas petrolíferas.
O estudo mostra ainda que a actividade marítima ligada ao sector da energia mudou em poucos anos. O número global de turbinas eólicas duplicou durante o período do estudo, com um crescimento exponencial em países como a China, que registou um crescimento da ordem dos 900% entre 2017 e 2021. Cerca de 950 turbinas eólicas foram instaladas em média por ano em águas territoriais chinesas nesse intervalo.
Uma das limitações do estudo está no nível de definição das imagens disponibilizadas por satélites como o Sentinela 1, do Copérnico, o programa europeu de observação da Terra: 20 metros por pixel. Esta resolução não permite identificar pequenos barcos de pesca, por exemplo, o que deixa múltiplas comunidades piscatórias fora do mapa, notam Konstantin Klemmer e Esther Rolf.
Os autores esperam que esta abordagem de análise de dados de satélite — que estão disponíveis publicamente — democratize a monitorização dos oceanos, permitindo que países desfavorecidos possam usar o método para, por exemplo, apoiar comunidades piscatórias. O estudo destaca ainda o papel futuro que a aprendizagem profunda pode ter nessa empreitada de protecção do alto-mar. Entre as aplicações possíveis, está, por exemplo, o acompanhamento de destroços marinhos ou blooms de algas.