Na Palestina, as tribos beduínas resistem ao apagamento cultural
Há décadas que o povo beduíno sofre “a parte mais pesada da ocupação” israelita. A fotógrafa Petra Bašnáková passou três anos com estes nómadas. Fez retratos de resistência.
Numa manhã de Outubro de 2019, Petra Bašnáková viu nascer o Sol sobre a paisagem árida do deserto da Judeia, em Nabi Musa, na Cisjordânia. Depois de um serão passado em torno da fogueira, na companhia de amigos e de um grupo de beduínos “modernos”, quem com ela viu despontar os primeiros raios de luz decidiu recolher-se aos seus aposentos. “Embora estivesse cansada, ainda quis, sozinha, caminhar mais um pouco por aquela área”, conta a fotógrafa ao P3. “E é assim que começa a minha história.”
Já sem saber exactamente onde estava, deambulando sobre a típica formação rochosa pirometamórfica daquela região, Petra rendeu-se ao cansaço. Deitou-se sobre uma rocha quente e adormeceu. “Acordei com um menino sentado num burro branco, seguido por duas cabras negras, que, fitando-me, dizia ‘yalla, yalla’. Pensei que ainda estava a sonhar.” Petra não tinha consigo o seu telefone, apenas a sua câmara fotográfica, e não sabia como regressar. “Decidi confiar no meu instinto e seguir o menino. Ele deu-me a mão, indicando-me que era bem-vinda ao seu rebanho, e eu obedeci. Filmei todo o percurso e gravei mensagens para os meus pais, para o caso de algo de mal me acontecer.”
Petra, a fotógrafa eslovaca, e Usama, o menino beduíno palestiniano, embarcaram, assim, “numa viagem de confiança entre dois estranhos de mundos diferentes”. Debaixo de Sol, envoltos no vasto silêncio do deserto, percorreram a distância que os separava do seu destino. “Ele conduziu-me até algo precioso: a sua família. No interior da tenda onde viviam, prepararam-me o pequeno-almoço. Comi, bebi chá, fumei um cigarro.”
Aquele momento de pura hospitalidade, intimidade e vulnerabilidade mútua surtiu um poderoso efeito em Petra. “Percebi que havia algo de muito singular e precioso naquelas pessoas, naquela cultura.” O seu coração estava rendido. Nos mais de três anos seguintes, a fotógrafa entregou-se ao retrato profundo das gentes da “nação do deserto” da Palestina. O seu fotolivro, Born of Sand and Sun, editado recentemente pela britânica Dewi Lewis, emoldura delicadamente esse retrato.
“Os mais vulneráveis do território ocupado”
Durante séculos, muito antes do mandato britânico da Palestina (1917-48) e do subsequente nascimento do Estado de Israel – ainda sob o jugo do Império Otomano –, já inúmeras tribos de beduínos habitavam a região do Neguev-Naqab, no sul do território da Palestina, e na Galileia, no norte – antes de 1947, estima-se que fossem entre 65 e 90 mil no Neguev e 17 mil na Galileia.
Após a Nakba, que a ONU define como o “desalojamento e expropriação maciços dos palestinianos durante a guerra israelo-árabe de 1948”, apenas 11 mil beduínos permaneceram no Neguev e cinco mil na Galileia, tendo os restantes sido forçados a deslocar-se para os territórios árabes da Palestina. O povo seminómada, que hoje se concentra em maior número na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, é considerado pela ONU “um dos mais vulneráveis no território ocupado”.
“A minha pesquisa sobre o povo beduíno, junto de organizações locais e da ONU, cujos escritórios visitei, em Jerusalém, levou-me a concluir que os beduínos são um povo corajoso que enfrenta, há muitas décadas, uma situação terrível”, refere Petra Bašnáková. Junto das muitas famílias de tribos beduínas que conheceu na Cisjordânia, entre 2019 e 2023, a fotógrafa pôde observar e experienciar os obstáculos diários que resultam da ocupação israelita sobre o seu modo de vida, restrições que erodem os alicerces da sua identidade, assentes no nomadismo e na pastorícia.
A ONU refere que o povo beduíno sofre, na Palestina, “a parte mais pesada da ocupação” israelita. Restrições à liberdade de movimento, deslocamentos forçados justificados pela construção e expansão de colonatos ilegais israelitas, regimes restritivos de ordenamento de território, expropriações, indeferimento crónico de licenças de construção, demolições, falta de resposta policial à violência perpetrada por colonos, acesso deficitários a serviços públicos e bens essenciais – nomeadamente a água, electricidade, ao sistema de justiça e ao emprego – são apontados pela ONU como os desafios mais graves e prementes que enfrentam.
Na Cisjordânia, as experiências de Petra parecem confirmar essas violações de direitos humanos. “Uma vez, numa área próxima de Jericó, eu estava a acompanhar uma família beduína e o seu rebanho quando um grupo de colonos israelitas se aproximou”, narra a fotógrafa. “Dentro de jipes, eles gritavam e começaram a disparar contra algumas das cabras. A família não podia fazer nada. Naquela área desértica, a céu aberto, não havia lugar onde pudessem esconder-se ou abrigar os animais.”
Num impulso, Petra decidiu filmar o ataque. “Quando os colonos se aproximaram, eu perguntei-lhes se eles achavam a sua atitude normal, correcta. Eles insultaram-me, em hebraico, e foram embora. A família disse-me que se sentiu mais segura na minha presença. Aparentemente, o facto de eu estar a recolher imagens fez com que o ataque não fosse tão violento como era expectável.”
Outro dos problemas que Petra detectou foi o do acesso à água. “Visitei muitas aldeias beduínas sem água”, conta. “As comunidades são obrigadas a comprá-la a terceiros, a preços muito elevados, o que dificulta bastante as suas vidas. Em Jerusalém Ocidental, do lado israelita, há fontes públicas com água potável gratuita. Isso deixa-me zangada, é uma enorme injustiça.”
Livres como camelos
Existem cada vez menos beduínos seminómadas na Palestina – a sua sedentarização tem sido promovida por políticas que inibem a prática da tradição desde o início do século XX, primeiro por britânicos e, mais tarde, por israelitas. “Actualmente, o exército israelita controla áreas onde muitos beduínos pastoreiam as suas cabras, na Cisjordânia ocupada”, afirma a eslovaca de 26 anos, natural de Bratislava. “Uma família beduína que visitei muitas vezes teve de vender o seu rebanho porque o exército a ameaçou. Disse-lhes que ou vendiam as cabras ou iriam demolir a sua casa.”
A criação de cabras, que está intimamente ligada à prática nómada, é um dos pilares identitários das tribos beduínas. As batalhas legais, as demolições, os deslocamentos forçados, a violência, a pobreza induzida pela ocupação sobre estas comunidades colocam em risco de extinção uma cultura centenária.
“Dentro de poucos anos, é provável que o seminomadismo que caracteriza os beduínos deixe totalmente de existir”, lamenta Bašnáková. “Muitos beduínos já vivem em cidades, adaptaram-se ao modo de vida sedentário. Muitos já têm empregos convencionais – geralmente trabalhos não qualificados, mal pagos, ou ligados ao turismo. A vida no deserto tornou-se demasiado difícil.” Mas há quem resista. E é sobre resistência que versa este livro.
São, à primeira vista, plácidas, serenas, as fotografias que Petra Bašnáková produziu com a sua câmara de médio formato e que estão plasmadas em Born of Sand and Sun. Mas desengane-se quem não vir para além da superfície das fotografias do projecto que foi distinguido, em 2023, no concurso Sony World Photography Awards e exibido, no mesmo ano, no festival Photo London. “O livro é sobre o conflito, sobre tudo o que se passa lá”, explica a fotógrafa. “É metafórico, poético, mas também é muito político.”
No plano palpável, as imagens descrevem aldeias em risco de demolição, vítimas de deslocamento forçado que enfrentam um quotidiano de opressão, estruturas improvisadas, inorgânicas, em contexto de delapidação; noutro plano, etéreo, elas encerram o silêncio do deserto, expresso na sua quietude quase monocromática, emanam o calor inexplicável que assoma diante da simbiose perfeita entre o que é humano e natural e desvelam a beleza da resistência estóica de um povo que almeja realcançar a liberdade.
“Um dia, na véspera de voltar para casa, uma das famílias que acompanhei levou-me até um lugar muito bonito, no topo de uma escarpa”, recorda Petra. “A Nadia, a esposa de um dos beduínos, chamou-me à parte, pediu-me que a acompanhasse para olharmos a vista. Lá em baixo, descansava um grupo de camelos e ela disse-me: ‘Acredito que, um dia, seremos tão livres quanto eles’.”
A vida de Petra mudou após o contacto com o povo beduíno da Palestina. “Creio que ter vivido com eles no deserto – o lugar onde há tudo e não há nada ao mesmo tempo – me mudou. Creio ter encontrado paz interior. É difícil de explicar. Acho que no deserto senti, pela primeira vez, que Deus existe.”