José Sérgio fez o retrato africano e afrodescendente do Porto

O fotojornalista dedicou quatro anos ao retrato das comunidades africana e afrodescendente num Porto cada vez menos branco. Presentes! impõe-se contra a sua invisibilidade.

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A ponte D. Luís I tatuada no braço da activista Mafalda Fernandes José Sérgio
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“Sempre que pergunto, a resposta parece ensaiada: ‘Não há muitos africanos no Porto. Em Lisboa há muitos, mas aqui não.’” A afirmação, repetida “em coro” por quem vive no Porto, desassossegava José Sérgio, fotojornalista nascido e criado em Maputo que viveu em Lisboa quase duas décadas antes de se mudar para o Porto.

“Quando comecei a passar mais tempo no Porto, quando me preparava para mudar para a cidade — entre 2017 e 2018 , passei a deslocar-me como qualquer portuense se desloca, ou seja, nos transportes públicos.”

Não esquece a primeira vez que entrou no metro do Porto, de manhã, num dia de semana. “Estava cheio de africanos. Pensei: ‘Uau! O que se passou aqui?’” E assim se adensou a inquietação que serviu de combustível a quatro anos de trabalho contínuo que resultaram, em 2020, numa instalação no Mira Fórum, em Campanhã, no Porto, e, em Setembro de 2023, no livro Presentes! Africanos e Afro-descendentes no Porto. “Porquê esta invisibilidade? Serão estas pessoas efectivamente pouco visíveis na cidade ou até que ponto… não as quereremos ver?”

A curiosidade do fotógrafo, também ele membro da comunidade africana no Porto, levou-o ao contacto com embaixadas, universidades, instituições que se debruçavam sobre o tema.

Nessa altura, José Sérgio não poderia prever que daria início a uma longa jornada que resultaria num livro com mais de 180 fotografias que perfazem o retrato do Porto não branco e multicultural da actualidade. “Queria perceber quantos africanos estariam a viver no Porto, saber, em termos qualitativos e quantitativos, como eram e como estavam organizadas. Isso era importante para eu traçar o meu próprio plano de trabalho e definir uma abordagem.”

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Lisa num jardim do Porto José Sérgio

A partir dos contactos que estabeleceu, José Sérgio não obteve respostas. “Ninguém me dava uma resposta oficial. Não percebi se não existiriam esses dados, ou se não mos forneciam. Passados alguns meses, decidi mudar de estratégia.” Virou-se para a rua, para o contacto directo com as pessoas. “Sabia da existência de alguns lugares que eram quase instituições para os membros das comunidades africanas e afrodescendentes, como os restaurantes Tia Orlanda, em Campanhã, ou a Filó, no Bonfim. E visitei esses lugares, onde fui recebido de braços abertos.”

Temendo ficar preso num circuito fechado, decidiu não se fixar em locais e entregar-se a uma certa aleatoriedade. Assim, desenvolveu o projecto num processo de constante arranque, reinício de interacção, método que exige um grande investimento emocional e motivacional.

“Existe, entre muitos africanos – não todos, mas uma maioria – um gesto de reconhecimento quando se cruzam na rua. Não é um cumprimento formal, pode ser só um aceno, um olhar, um meio sorriso. Eu decidi tirar proveito disso e abordar, na rua, aqueles com quem me cruzava e sentia uma simpatia momentânea.” Encontrou, deste modo, pessoas de vários círculos, hábitos, nacionalidades, proveniências, com diferentes interesses, ocupações e missões.

Mesquita do Porto José Sérgio
Já Lá Foste Academy Fest José Sérgio
Mariane e Maria José Sérgio
Ercilia Fernandes José Sérgio
Michele Mara e filho José Sérgio
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Mesquita do Porto José Sérgio

Há, entre os 80 retratados no livro, pessoas provenientes da Gâmbia, Mali, Cabo Verde, Brasil, Angola, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri, Senegal, Moçambique, Cuba, São Tomé e Príncipe, Costa do Marfim e Portugal; há, entre eles, quem já tenha nascido em Portugal (ou no Porto – pessoas a quem José Sérgio apelida de “afro-portuenses”), quem tenha imigrado no pós-Revolução de Abril de 1974 das ex-colónias portuguesas ou mesmo quem tenha chegado há pouco tempo. Têm entre 21 e 81 anos e são empresários, médicos, trabalhadores do sector comercial, professores, desportistas, estudantes, artistas, activistas.

Como desejas que os outros te vejam?

Na primeira abordagem, o fotógrafo deparou-se com a primeira grande dúvida. “É difícil interpelar alguém na rua e pedir um retrato. As pessoas não estão habituadas, algumas ficam desconfiadas, é necessário dar uma pista do que se pretende.

Lembrou-se de lançar o pedido em jeito de desafio: Se quisesses enviar um retrato para a terra, como gostarias que te vissem?” Mas logo percebeu que teria de reformular a questão. Havia, entre as pessoas que abordava, quem já tivesse nascido em Portugal e para quem o conceito de origem ou proveniência não fizesse sentido. Assim, optou por mudar. “Como desejas que os outros te vejam?” foi o mote que permaneceu até ao final do projecto — e este é um dado fundamental que condiciona toda a leitura do livro.

José Sérgio desenvolveu um trabalho colaborativo. “Achei que os retratos deveriam ser construídos a dois, por mim e pelo retratado.” Quem estivesse diante da sua lente dispunha da liberdade de se fazer representar como quisesse, onde quisesse, mas o fotógrafo ia direccionando, balizando, de forma a ter controlo sobre a imagem final. “Resume-se a deixar fluir de uma forma controlada. Não impus um caminho, apenas controlei a forma como o exploravam.”

Recorda o primeiro retrato, o de Porfírio (conhecido por “blacdamus”). “Lembro-me de sair de casa e de me cruzar com ele. Sem o conhecer, acenei-lhe com a cabeça e ele devolveu o aceno. Ele vinha de chinelos a puxar uma coluna de som num carrinho de transporte, vinha no seu mundo. Eu caminhei uns 200 metros e, quando cheguei a uma esquina, pensei: ‘Nunca mais vou ver esta pessoa, é melhor falar com ela.’” Decidiu voltar para trás e abordar Porfírio. Sem câmaras visíveis, lançou o primeiro repto e pediu que trocassem contactos. “Foi assim com todas as pessoas que fotografei neste projecto.”

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Porfírio ("blacdamus") José Sérgio

No primeiro encontro, fotógrafo e o futuro retratado conversavam, trocavam impressões; no segundo, José Sérgio filmava uma entrevista-padrão que espera, futuramente, vir a dar corpo a um documentário. A fotografia chegava já depois de recolher toda a informação. “Nas conversas, percebia quem eram, o que gostavam de fazer, os lugares que gostavam de frequentar.”

Porfírio sentia especial afeição por um lugar, na proximidade do centro comercial Lima 5, onde se recolhia para pensar — foi nesse local que José Sérgio o fotografou. “E se isto fosse um palco para ti?”, perguntou-lhe. “Eu cantava ali de cima”, retorquiu blacdamus. Escalou a estrutura visível no retrato e posou. Há, assim, algo de pessoal, de profundamente identitário, em cada um dos retratos.

Afro-portuenses

Diversidade é palavra-chave em Presentes!. A diversidade está patente nos lugares, nas pessoas, nas histórias e universos de cada pessoa retratada, mas também na linguagem fotográfica adoptada — que se divide entre o retrato formal, construído, e a fotografia de carácter fotojornalístico.

Os primeiros 40 retratos, que estiveram em exposição no Espaço Mira em 2020, tinham uma base coesa, homogénea, ponto de partida que foi deliberadamente rompido quando o projecto se expandiu no sentido da construção de um livro —​ aí entram imagens de carácter mais fotojornalístico, onde o contexto ganha relevância.

No interior de ginásios, cabeleireiros, cozinhas de restaurantes, espaços de diversão (diurna ou nocturna) e de culto religioso, o fotógrafo revela a geografia fina e as vivências privadas das comunidades africanas e afrodescendentes do Porto.

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African Heritage and Colonial Roots Tours Porto José Sérgio

“Por vezes, no meio de conversas que mantinha com os retratados, surgia o tema de que alguém iria baptizar o filho e eu dizia que gostaria de estar presente e fotografar. A partir de cada interacção abriam-se outros mundos, outras oportunidades.” Foi assim que chegou até festas de aniversário, reuniões familiares ou jogos de futebol organizados entre amigos, entre muitos outros lugares que não seriam facilmente acessíveis e que acrescentam profundidade ao seu retrato colectivo.

O texto que acompanha as fotografias no livro, da autoria da jornalista do PÚBLICO Mariana Duarte, dá a conhecer histórias de 12 intervenientes nos mais diversos contextos. Entre elas estão a de Dominick Donk, barbeiro e empresário cabo-verdiano que criou a iniciativa Quintas-Feiras Mágicas, que consiste num dia por semana em que presta serviço gratuitamente a pessoas em condição de sem abrigo na Praça da Batalha, no Porto.

Ou a do guineense Sori Djaló, também retratado por José Sérgio, que dedicou a vida ao desporto e ao empreendedorismo — foi campeão europeu de MMA e fundou uma academia de artes marciais em Gaia. Ou da activista Mafalda Fernandes, de 25 anos, “portuguesa de ascendência cabo-verdiana, mulher negra e mulher do Norte ‘em doses mais ou menos iguais’”, que tem a Ponte D. Luís I tatuada no braço e dedica o seu tempo a projectos que têm em vista a luta e consciencialização para questões raciais em Portugal.

“Fiquei surpreendido por perceber que uma boa parte das pessoas que encontrei ao longo do projecto é ‘afro-portuense’, são pessoas que já nasceram cá”, observa José Sérgio. E onde encaixa, afinal, a questão da sua invisibilidade? “Muitas destas pessoas têm vidas de trabalho — por vezes complicadas e difíceis — que não lhes permitem respirar, estar em qualquer parte ao final do dia a usufruir da cidade. São pessoas muito trabalhadoras que, muitas vezes, preferem estar em casa a descansar. Existem, claro, aquelas que se juntam com pessoas das suas comunidades ou que fazem pequenos retiros ao fim-de-semana.”

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Baptizado de Daniela José Sérgio

Mas há também, aponta, lugares onde as pessoas se juntam e locais que muitos frequentam mais do que outros — e dá o exemplo da zona em torno da Praça do Marquês, onde “provavelmente elas serão mais visíveis”.

“O Porto tem uma dinâmica diferente da de Lisboa. Em Lisboa, existem ‘bairros africanos’, por exemplo; no Porto, as pessoas africanas ou afrodescententes estão mais dispersas no território, não existe uma concentração específica.” José Sérgio sublinha, no entanto, que estas observações são puramente empíricas, que “todas estas questões deveriam ser alvo de estudo científico”.

Presentes! com ponto de exclamação

As 80 entrevistas que realizou levantam o véu sobre as vivências, os hábitos, a mundividência e a experiência de vida das pessoas destas comunidades. “A partir das respostas que obtive, posso afirmar que a maioria vive em situação de desvantagem. As pessoas não brancas têm, em Portugal, de lutar mais do que as outras para serem vistas, têm de dar provas de que são capazes, de que estão ao mesmo nível. Apesar de vermos repetido o chavão de que as oportunidades são iguais para todos, na realidade não são. No terreno, percebe-se que não são. E é por esse motivo que é preciso dar visibilidade a estas pessoas, a este tema.”

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Auto-retrato do fotojornalista José Sérgio José Sérgio

O prefácio do livro, da autoria de Sheila Khan, socióloga e investigadora especializada em estudos pós-coloniais, reflecte sobre a distância que existe entre o discurso político e institucional (que descreve comummente Portugal como “uma nação multicultural, acolhedora e de fácil integração”) e a “realidade palpável” de quem pertence a estas comunidades. Estamos diante de um trabalho de cariz activista? “Eu não sou activista”, responde o fotojornalista. “Eu criei este projecto para responder às minhas próprias questões. Mas tenho noção de que, ao querer tornar uma causa visível, estou a fazer activismo.”

Presentes!, com ponto de exclamação, celebra “a comunhão feliz de vários retratos que formam um único retrato”, resume. “Estar presente, estar aqui com atitude, ser visto. É algo que contém alegria. O ponto de exclamação vem no sentido de reforçar essa ideia.”

José Sérgio editou o livro sem recorrer a um olhar externo. “Há alturas na vida em que temos muitas dúvidas e há outras em que essas se dissipam”, justifica o fotojornalista. “Por vezes, perguntar faz com que tenhamos dúvidas, incertezas, o que pode fazer com que abdiquemos de coisas de que gostamos. No final de contas, é uma questão de edição, uma questão de gosto. Quis assumir esse risco.”

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