Devemos proibir a pesca de enguias? Muitos cientistas dizem que sim
A proibição total da captura da enguia-europeia foi reivindicada num manifesto subscrito por mais de 300 cientistas em Espanha. Mas esta interdição não é consensual na comunidade científica.
A proibição total da captura da enguia-europeia (Anguilla anguilla) foi reivindicada este mês, em Espanha, num manifesto subscrito por mais de 300 cientistas. Apesar de a espécie encontrar-se em risco “crítico” de extinção, e de o Conselho Internacional de Exploração do Mar (ICES, na sigla inglesa) recomendar a redução drástica dos factores de pressão sobre a espécie, as enguias continuam a aparecer nas quotas de pesca aprovadas pela União Europeia para 2024.
“Parar completamente com as pescas é difícil, e é uma decisão política. O lobby da enguia é muito forte e faz um bom trabalho, sobretudo em França. As quotas de pescas para 2024 conseguem ser ainda mais permissivas do que as deste ano, uma vez que prevêem uma janela temporal maior [mais 50 dias] para pescar o meixão [enguias juvenis] para repovoamento”, lamenta o biólogo espanhol Miguel Clavero, um dos subscritores do manifesto, numa videochamada com o PÚBLICO.
Todos os anos, o ICES pede a uma equipa de especialistas em enguias para emitir um parecer científico com recomendações sobre a exploração da espécie. O manifesto espanhol recorda que, desde 2020, “há já demasiado tempo”, que esse grupo de trabalho desaconselha a captura de enguia. “Em 2022 e 2023, a recomendação tem sido clara e enfática: proibição total. Zero capturas”, lê-se no documento.
Tão protegidas como as baleias?
A União Europeia adoptou medidas de conservação há mais de 15 anos. Bruxelas lançou em 2007 uma regulamentação para permitir a recuperação do stock de enguias. Mas, para Miguel Clavero, que defende as enguias sejam tão protegidas como as baleias foram há algumas décadas, o plano europeu “não funcionou” e não constitui “uma boa estratégia”.
“A situação está fora de controlo, a qualquer momento podemos passar a um quadro de extinção”, diz o investigador sénior do Conselho Superior de Investigação Científica de Espanha, que não compreende como a espécie continua a ser degustada em restaurantes finos. Desde 2008 a Anguilla anguilla está qualificada como “criticamente ameaçada” na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza.
A cientista Estibaliz Díaz, que representa Espanha no grupo de peritos do ICES, explicou ao PÚBLICO que o parecer do ICES é dado após a análise do recrutamento – ou seja, a quantificação do número de enguias-de-vidro que chegam às costas.
“O estado da enguia-europeia continua crítico. Os índices de recrutamento de enguias-de-vidro e enguias-amarelas diminuíram fortemente de 1980 a 2011”, refere Estibaliz Díaz, responsável pela gestão de pescas sustentáveis no ATZI, um centro de investigação basco dedicado aos alimentos de origem marinha.
“As séries cronológicas de 1980 a 2023 mostram que o recrutamento de enguias permanece num nível muito baixo”, conclui a investigadora.
Proibição total não é consensual
A comunidade científica não tem, contudo, uma posição unânime sobre a proibição absoluta das pescas. A investigadora Isabel Domingos, por exemplo, que representa Portugal no grupo de trabalho do ICES, não subscreveria o manifesto espanhol pois defende que a interdição total seria contraproducente.
“Se nós proibíssemos a pesca na íntegra, nós perdemos séries temporais relevantes dos desembarques pesqueiros, que são importantes para avaliarmos o stock a nível internacional. Proibindo a pesca, ela continuaria a ser feita ilegalmente e, ao mesmo tempo, perderíamos uma série de dados que são recolhidos na lota”, explica ao PÚBLICO Isabel Domingos, professora na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e investigadora no Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE).
Isabel Domingos considera “adequadas” as quotas de pescas para 2024. E diz não compreender por que razão “só os pescadores é que têm de pagar a conta da recuperação da espécie” quando há outros factores importantes na conservação da espécie – é o caso das barragens hidroeléctricas e do mercado negro.
“Nunca vamos acabar com a pesca ilegal de meixão. Desde 2000, a pesca está proibida, mas a pressão internacional é enorme e o dinheiro associado é brutalmente elevado. Há sempre uma tentação de prevaricar, é um bocadinho como o problema da droga”, refere a cientista portuguesa.
Neste momento, por indicação da Comissão Europeia, a pesca da Anguilla anguilla está proibida durante seis meses, período que inclui o período de migração das enguias-prateadas, que ocorre em Portugal geralmente entre Outubro e Janeiro, dependendo das condições atmosféricas em cada ano. “A janela de migração está completamente coberta, garantimos que possam sair das nossas águas sem pesca”, diz Isabel Domingos.
O ciclo de vida da enguia
A Anguilla anguilla possui um ciclo de vida complexo, que inclui transformações físicas, mudanças de cor e viagens transatlânticas. Estima-se que as enguias têm uma zona de reprodução comum, provavelmente o mar dos Sargaços, nas Caraíbas, na América Central. Nascem em água salgada, mas crescem e engordam em rios, lagoas costeiras e lagos.
Quando estão adultas, com boas reservas de gordura, as enguias deixam a água doce e fazem uma viagem de mais de 6000 quilómetros. O objectivo será regressar ao mar dos Sargaços para libertar os ovos e morrer. As larvas transparentes que eclodem são depois transportadas pelas correntes oceânicas de volta ao continente.
Essa transição entre o oceano e os cursos fluviais pode ser impedida não só pela pesca, mas também por obstáculos físicos, como as barragens hidroeléctricas.
“Nalguns países, as enguias-prateadas são transportadas para cima das barragens e, quando migram, acabam por morrer, saem das turbinas às postas. Há uma mortalidade muito grande. Em Portugal, não temos uma passagem para peixes acima das hidreléctricas, e ainda bem, pois não sou a favor de fazer passar enguias para montante das barragens”, diz Isabel Domingos.
Se por um lado os especialistas do ICES consideram que em 2024 deveria haver zero capturas em todos os habitats, recorda Estibaliz Díaz, também é verdade que parecer refere que a quantidade e a qualidade dos habitats das enguias deveriam ser restabelecidas. Isto significa, entre outras coisas, garantir uma menor fragmentação dos rios.
Isabel Domingos concorda que é importante “tentar restabelecer o contínuo nos rios, removendo obstáculos à migração”. “Há uma série de medidas que foram adoptadas, não tantas como desejaríamos, mas é o eterno problema – nós precisamos de electricidade. Não vamos conseguir destruir todas as barragens para as enguias passarem, isto seria uma quimera”, admite a investigadora portuguesa.