“Cunhas” e Voltaire
As manifestações evidentes de corrupção política ficam impunes, pelo critério exonerativo da “adequação social” e pela remissão da conduta criminosa para a esfera disciplinar, moral ou administrativa.
Se existe figura na História Universal que parece o nosso Presidente da República é Voltaire. Marcelo, tal como Voltaire, o filósofo das "Luzes", tornou-se, quase por unanimidade, alguém visto como um verdadeiro "paladino da justiça", a quem se deve recorrer nos casos de intolerância e de má vontade das instituições ao não aceder aos pedidos e lamúrias do povo.
Assim, ao longo dos seus primeiro e segundo mandatos, não hesitou em assumir esse papel, passando da condição de homem catedrático à de homem de ação. Tal como Voltaire, ele conserva sempre um temperamento fleumático, é um cético moderado e sempre amável no trato.
Os seus argumentos e os seus juízos eram então acatados, ou tolerados, até pelos seus próprios inimigos, como o clero e a nobreza; no caso do português, os ministros do Governo, os dirigentes da oposição e os sindicalistas acham mais prudente fazer-lhe algumas concessões do que enfrentar a fúria devastadora da sua ajuizada pena ou, pior, do seu comentarismo político, arte em que ninguém lhe consegue levar a palma.
Como em tudo na vida, chegou, entretanto, o momento em que os ímpetos da personalidade são – aos olhos do povo – motivo de censura, e isso acontece porque esse mesmo povo não sabe distinguir o "escrupuloso cumprimento das regras e procedimentos" da "cunha" e do tráfico de influências.
A "cunha" é o ato de alguém usar a sua posição ou ligações para favorecer outrem. As pessoas com conexões privilegiadas têm vantagens injustas sobre as que menos (ou mesmo nenhum) acesso têm a redes influentes.
O Presidente da República explicou que no dia 21 de outubro de 2019 havia recebido um email do filho a apresentar a situação das gémeas luso-brasileiras, e a questioná-lo "se era possível o tratamento" das ditas no Hospital de Santa Maria, cujos serviços competentes, até àquela data, não tinham ainda dado resposta à família. E isto já depois de o Hospital Dona Estefânia ter recusado.
Ora, o assunto estava corretamente encaminhado, mas era preciso decidir a altura em que a família brasileira pretendia fazer o tal tratamento. E, para saber, o Presidente não sacou do seu portátil (não se tratava de uma selfie…), antes preferindo usar a organização e o funcionamento da sua Casa Civil, que mais não é do que uma poderosa máquina ministerial encapotada e alojada nos incontáveis gabinetes do Palácio de Belém, toda ela estruturada para prestar os esclarecimentos e o apoio técnico que lhe forem solicitados. Para tudo aquilo que um Presidente pretender que seja executado, haverá sempre um assessor, um adjunto ou um secretário adequado para o fazer. É a majestade das repúblicas…
O assunto suscitou a abertura de quatro inquéritos, a saber: um do Ministério Público; outro da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS); mais outro da Ordem dos Médicos; e, por fim, uma auditoria interna do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte. Em face de tanto inquérito, conseguir-se-á, alguma vez, apurar responsabilidades? Responsabilidade civil, disciplinar ou, até, penal jamais!
Não se pode ignorar, por outro lado, que os usos e costumes de uma sociedade como a portuguesa, onde não só o fenómeno da influência não é rejeitado, mas onde se presume publicamente que as pessoas têm amigos influentes em proporção direta com a sua própria autoestima. A estima, a promoção profissional e a reputação social fazem com que o contexto social estabeleça um clima ou um ambiente ideológico que não é propício à penalização de condutas que os próprios tribunais classificam como socialmente adequadas.
Fruto da minha experiência de advogado em casos de tráfico de influência, a tendência dos tribunais é a de seguirem o critério da Teoria da Adequação Social, critério esse que nada mais é do que um princípio do Direito Penal que preconiza que uma conduta, mesmo que se enquadre formalmente como desviante, não será considerada criminosa se for socialmente adequada ou tolerada. São condutas aceites pelos costumes, pela cultura…
Nesta interpretação da lei que a nossa jurisprudência tem oferecido em relação ao crime de tráfico de influência observa-se a tendência para um esvaziamento progressivo do crime, tanto no seu âmbito objetivo como subjetivo, neutralizando diretamente o potencial do preceito legal como instrumento legislativo eficaz no combate à corrupção política.
O crime de tráfico de influência devia atingir os comportamentos prévios ao ato de corrupção, antecipando a tutela penal para o ato do negócio sobre o poder de influenciar o decisor, incluindo os atos do intermediário na corrupção. A finalidade do ato é obter uma decisão favorável de uma entidade pública, podendo essa mesma decisão até ser lícita (tráfico de influência impróprio) ou ilícita (tráfico de influência próprio).
Através desta interpretação penso, com todo o respeito, que as manifestações evidentes de corrupção política permanecem impunes, quer através do critério exonerativo da "adequação social" quer remetendo a repreensão da conduta criminosa para a esfera disciplinar ética, moral ou administrativa, não sendo de todo possível uma supervisão jurisdicional de atos políticos.
A nossa jurisprudência criou a figura das influências inócuas, ou seja, aquelas que ocorrem na decorrência da prática social, como causa de exclusão do caráter típico do crime de tráfico de influências, o qual se encontra vinculado à teoria da adequação social, o que permite sustentar que comportamentos socialmente apropriados não podem ser considerados criminosos.
Para os que se sentem injustiçados pelo sistema, a cunha constitui apenas uma parte da natureza humana. Ou então, como diria Voltaire, "os homens erram, os grandes homens confessam que erraram".
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico