Reflexo num poço

O que responderá uma mãe? O que me responderás, Maria?

Chamou por ele. Nada. Gritou o seu nome, apesar de o Severo lhe ter dito para jamais fazer barulho, poderia dar-se o caso de andar um guarda nas proximidades. Nada. Na noite anterior, a São tinha tido um sonho. Se Maria, Mãe de Deus, soubesse que o seu filho seria crucificado, tê-lo-ia? Foi esta a pergunta que a São ouviu nesse sonho. Estava um anjo sentado ao lado da Virgem a pôr-lhe essa questão, se tu, Maria, soubesses que o teu filho seria crucificado, tê-lo-ias ou farias uma infusão de arruda para abortar? Preferirás um homem comum, um fariseu frouxo ou um escriba qualquer que viverá até velho ou uma pessoa divina que morrerá prematuramente e sofrerá o mais humilhante suplício? O que responderá uma mãe? O que me responderás, Maria? O anjo vestia de branco e tinha asas, dois pares, o rosto era estranhamente assimétrico. Virou-se de repente para a São e disse-lhe que ela ia ter uma menina. Já sei, disse a São, o trigo germinou. Também lhe disse o anjo de cara assimétrica que a criança nasceria dia 25 de Dezembro e que morreria nova. 25 de Dezembro, disse a São, isso não dá nove meses, mas o anjo retrucou, dá oito, é suficiente para a coisa correr bem. O que é que isso significa, perguntou-lhe a São, morrer nova? O que significa nova? Morrer nova? Cinco anos? Vinte anos? Trinta anos? O presidente da câmara tinha cinquenta quando faleceu e diziam que era novo. E quando uma pessoa morre com sessenta anos dizem «ainda era nova». A São perguntou ao anjo: Nova como o presidente da câmara? Ou nova como quem morre aos sessenta? O anjo da cara assimétrica, a boca como uma porta entreaberta, perguntou-lhe: Se a tua filha vivesse apenas dez anos, tê-la-ias? Um segundo, tê-la-ias? A São pensou nisso e respondeu com clareza e sem hesitar: sim. Mas não seria pecado nenhum, disse o anjo, teres respondido de forma diferente e agires em conformidade, para isso criou Deus a arruda. A São acordou a chorar.

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