Novo adiamento da Lei dos Solos. “Continuamos a ter dificuldade em gerir o território”

Câmaras têm mais um ano para aplicar lei que acaba com os “solos urbanizáveis”. Em Novembro, apenas 64 autarquias do continente tinham concluído revisão dos PDM.

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No fundo, a existência de solos urbanizáveis significa “o estender de infra-estruturas e o seu desperdício”, diz o urbanista Jorge Carvalho. Manuel Roberto
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O Governo voltou a dar mais tempo para que as câmaras municipais adaptem os seus Planos Directores Municipais (PDM) à Lei dos Solos, num novo capítulo de um processo que se arrasta desde 2020, quando foi decidido o primeiro adiamento.

Se não houvesse qualquer alteração ao mais recente prazo, os municípios tinham até 31 de Dezembro deste ano para concluir o processo de adaptação dos PDM à Lei dos Solos, cujas regras estão em vigor desde 2015. Inicialmente, estava previsto um período de cinco anos para que as autarquias incorporassem as regras que acabavam com os solos urbanizáveis nos seus instrumentos de ordenamento territorial.

Mas os governos socialistas, a pedido da Associação Nacional de Municípios Portugueses, foram dilatando a data-limite. Na quinta-feira dia 21 de Dezembro, o Conselho de Ministros aprovou novo adiamento, que dá às autarquias mais um ano para terminarem o processo: terão até 31 de Dezembro de 2024.

O Governo dá ainda outro balão de oxigénio a municípios que não tinham sequer apresentado a primeira proposta de revisão do PDM: as câmaras têm até dia 31 de Maio para o fazer. Caso tal não aconteça, “será aplicada a sanção de suspensão de direito de candidatura a fundos europeus, com excepção das áreas relativas à saúde, educação, habitação ou apoio social”, menciona o Ministério da Coesão Territorial (MCT) numa nota enviada à comunicação social.

Na prática, este novo horizonte “permite levantar a suspensão do direito de candidatura a apoios financeiros que pendia, actualmente, sobre 28 municípios”, informa o ministério de Ana Abrunhosa. A extensão dos prazos atira uma eventual nova decisão para o Governo que sair das eleições marcadas para Março de 2024.

“Não devia ser assim. Não é normal uma autarquia não desencadear um processo de revisão que está na lei, mas isso [a ameaça de penalização] faz as instituições mexerem-se", considera a geógrafa e professora da Universidade do Porto Teresa Sá Marques. Recorda que os PDM de primeira geração, no início dos anos 1990, foram aprovados com recurso a uma ferramenta de pressão semelhante: quem não os elaborasse ficava sem fundos comunitários.

No entanto, os novos prazos não garantem que o assunto fique resolvido, receia o arquitecto e urbanista Ivo Oliveira. “Talvez daqui por um ano estejamos na mesma situação”, comenta: “Se os municípios não conseguiram actualizar o PDM em dez anos, como é que vão conseguir acabar [o processo] nos restantes sete meses? Continuamos numa situação que tem consequências para o território.”

E que consequências tem? No fundo, representa a continuação de uma política que, em muitos casos, não trava a dispersão territorial. “A frase mais simbólica da Lei dos Solos foi 'eliminar as áreas urbanizáveis'", lembra o urbanista Jorge Carvalho, que lamenta que o “incumprimento não tenha consequências”. “Isto exprime a nossa forma de funcionar pouco rigorosa”, afirma.

No fundo, a existência de solos urbanizáveis significa “o estender de infra-estruturas", como estradas, redes eléctricas, de comunicações, de águas e saneamento, “e o seu desperdício”, com os consequentes gastos para o erário público, nota.

“Continuamos a consumir solo e a ter dificuldades em gerir o nosso território, em proteger espaços com maior sensibilidade urbana e ecológica”, assinala Ivo Oliveira, que é também professor da Universidade do Minho e investigador do Laboratório de Paisagens, Património e Território (Lab2PT). "A nova lei favorecia a densificação e o aproveitamento das infra-estruturas já existentes, não apenas as mais básicas, mas também as de mobilidade", refere.

Concede que o processo de elaboração de um PDM seja muito exigente e burocrático, tanto para as autarquias como para os vários braços da administração central que têm uma palavra a dizer. Mas esse dado não justifica uma demora de quase dez anos na adopção da lei.

Até 30 de Novembro, só 64 câmaras tinham o PDM revisto. Havia 214 municípios que estavam em processo de alteração ou revisão e 28 autarquias não tinham sequer agendado a primeira reunião para apresentação de proposta do plano, mostram números do MCT. E isso levanta também uma questão de igualdade, sublinha Ivo Oliveira. “Ao terem feito essa adaptação, os municípios que cumpriram acabam por ser colocados numa situação de desvantagem em relação a estes que estão em permanente revisão”, entende.

Repetição de erros

Há um argumento contra o fim do solo urbanizável que voltou à tona com a discussão sobre as soluções para a crise da habitação que o país atravessa. Para fazer frente à escassez de fogos disponíveis, há quem sustente que essa classificação é necessária para construir e colocar mais casas no mercado, o que faria baixar os preços.

“É uma falácia”, contesta Jorge Carvalho, que foi professor na Universidade de Aveiro e que diz que Portugal tem o maior rácio de número de fogos por família da Europa. “Temos muito alojamento. Só que, por razões diversas, há um hábito de arrecadar habitação, que não entra no mercado. Faz-se mais habitação e os preços continuam a subir”, refere. A verdadeira necessidade, considera, é de uma política que faça com que os fogos existentes entrem no mercado.

Acresce que as cidades portuguesas cresceram de forma muito fragmentada, “o que significa que, nos interstícios da continuidade urbana, há muitos espaços que é preciso urbanizar para que as cidades se qualifiquem”.

No entanto, o programa Mais Habitação veio abrir uma excepção a este fim programado dos solos urbanizáveis: permite construir habitação a custos controlados em solos rústicos e reserva agrícola, desde que estes terrenos sejam limítrofes a áreas urbanas. Um dos argumentos “é optimizar as infra-estruturas já existentes na proximidade”, contextualiza Ivo Oliveira. “Mas, na prática, isso significa pôr as pessoas a morar em territórios de margem.”

Jorge Carvalho compreende que, por um lado, este expediente permita construir e recorrer a fundos de forma mais fácil e rápida. Mas diz que é também um erro técnico: “Em vez de acontecer de forma programada e planeada, pode acontecer numa zona qualquer”, seguindo o princípio do terreno público disponível; preocupa-o também a repetição do formato “bairro social” e o reforço da “guetização” de algumas destas manchas, em vez de promover uma mistura socioeconómica que promova a coesão territorial.

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