O longo caminho de Ostrava para se ver livre do carvão

O país é o quarto Estado-membro que mais fundos vai receber da Comissão Europeia para abandonar uma economia e um sistema energético ainda muito dependentes do carvão. O caminho tem vários obstáculos.

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Lukas Kabon/Anadolu Agency via Getty Images

O colosso vai-se desenhando na paisagem à medida que nos aproximamos. Primeiro vêem-se enormes torres e chaminés erguidas contra um céu cinzento, depois um emaranhado de tubagens, estruturas cilíndricas, maquinaria pesada, edifícios em tijolo. Para onde quer que se olhe só se vê aquela cor terrosa do metal ferrugento. A imponência do sítio não deixa dúvidas quanto à importância deste antigo complexo siderúrgico a meia dúzia de quilómetros do centro de Ostrava.

O recinto de Dolní Vitkovice foi “o coração da indústria” do Império Austríaco, um dos centros industriais da Checoslováquia comunista e só deixou de funcionar quase às portas do terceiro milénio. Foram 162 anos a transformar carvão e a produzir aço que terminaram em 1998, alguns anos depois de a principal mina de carvão que alimentava o complexo ter fechado.

As dezenas de edifícios que o compõem integram hoje um grande pólo cultural, empresarial e de lazer, com museus, centro de conferências, lojas, restaurantes, oficinas, ginásio e hotel. Em Ostrava, não há evento de maior ou menor dimensão que não passe por Dolní Vitkovice, de que o Gong é o principal cartão-de-visita. É um antigo depósito de gás, paquidérmico, transformado num espaço multifunções, que tanto acolhe exposições e workshops como palestras para milhares de pessoas no seu auditório semicircular, a fazer lembrar os anfiteatros da Antiguidade.

É fácil perceber porque é que esta relíquia da arqueologia industrial se tornou uma peça-chave, um símbolo, no processo de transformação que a terceira maior cidade da República Checa está a empreender. Situada no extremo leste do país, a pouca distância da fronteira polaca, Ostrava deve a sua riqueza e desenvolvimento históricos à mineração de carvão, que se encontra em enorme abundância em toda a região da Morávia-Silésia, de que a cidade é capital. Mas o fim do governo comunista, em 1989, e agora a situação de crise climática ditaram a sentença de morte a esta matéria-prima, que na região se explora desde tempos imemoriais. Com os novos usos do antigo complexo fabril, as autoridades quiseram mostrar que essa sentença não se estende à cidade, nem à população.

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Antiga mina de carvão em Ostrava MARTIN DIVISEK/EPA

Não é simples. “Precisamos de parar com a fuga de cérebros e de melhorar a imagem da região”, resume Zdenek Karásek, membro do conselho regional com a pasta do desenvolvimento estratégico. Em 2004, poucos anos depois do encerramento de Dolní Vitkovice e da maior parte das minas de carvão na região, a taxa de desemprego na Morávia-Silésia rondava os 20%. “Mais de 100 mil pessoas que trabalhavam no sector do carvão foram integradas no mercado de trabalho”, congratula-se o político, revelando que agora a taxa de desemprego é de 5,8%.

A redução foi acentuada, mas esta taxa continua a ser superior à da média nacional. E atrás deste número escondem-se outros. “Não é difícil encontrar trabalho, difícil é encontrar um trabalho bem pago, e por isso é que tantos jovens se vão embora”, assume Karásek.

Era essa a intenção de Ondrej Suchacek, de 25 anos, cujos planos de emigrar para a Alemanha saíram furados por causa da pandemia. Por agora, trabalha como recepcionista na antiga mina de Landek, a que fornecia Dolní Vitkovice, encerrada em 1991 e hoje visitável. “O meu avô trabalhou nesta mina, abria galerias com dinamite”, conta Ondrej. Agora com 84 anos, o homem fez o mesmo que tantos outros na sua época: saltou de mina em mina, tanto na República Checa como na Polónia, consoante o ordenado que lhe pagavam. “O trabalho era horrível, mas muito bem pago. Ele não gosta muito de falar desses tempos”, diz o neto. “Ele é um pouco surdo e tem o andar curvado, porque, já mais para o fim, andava a transportar arcos de aço. Também tem problemas nos pulmões e na pele.”

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Um cliente enche o atrelado de carvão no armazém de uma antiga mina em Ostrava

Uma visita ao museu mineiro de Landek transmite uma noção clara das condições a que os trabalhadores estavam sujeitos. Confinados a espaços exíguos, suportavam o barulho ensurdecedor de toda a maquinaria de perfuração e transporte do carvão, as temperaturas e a humidade alta, o pó fino que impregnava o ar.

“Em Ostrava, toda a gente tem família que esteve ligada às minas de uma forma ou de outra”, vai relatando Daniel Lukac, que é o cicerone na descida a uma das galerias mais superficiais. Ao todo havia sete e a mais profunda situava-se 672 metros abaixo do solo. Dá o seu próprio exemplo: “A minha mãe namorou com um mineiro, um tio meu foi médico nas minas.” Quando a mina encerrou, tinha 1500 trabalhadores. “Isto é uma parte muito, muito importante da nossa história”, reconhece Ondrej. “Mas é tempo de seguir em frente. O carvão ainda cá está, mas seria difícil reabrir as minas. E temos é de apostar em tecnologias mais sustentáveis.”

Transição... para onde?

A meia hora de Ostrava, paredes meias com a fronteira polaca, fica Karviná, onde se situa a última mina de carvão ainda em exploração da Morávia-Silésia. Há outras minas activas na República Checa, nas regiões de Karlovy Vary e Ústí, mas todas têm de encerrar nos próximos anos. E o uso deste combustível para a geração de energia também tem os dias contados.

Para cumprir o estabelecido no Acordo de Paris, o país devia encerrar as centrais eléctricas a carvão em 2030, mas o Governo comprometeu-se a fazê-lo até 2033. Faltam pouco mais de nove anos e mesmo essa meta pode ser demasiado ambiciosa: no ano passado, a extracção de carvão e lignito atingiu um “crescimento sem precedentes” no país, segundo responsáveis do sector. A recuperação económica pós-pandemia e a crise energética provocada pela invasão russa da Ucrânia foram apontadas como os principais motivos para que a República Checa tivesse alcançado uma produção de 35 milhões de toneladas de carvão em 2022, mantendo-se como o quarto país da União Europeia que mais extraiu este recurso, atrás de Bulgária, Polónia e Alemanha.

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mineiros em Karviná, na região da Morávia-Silésia, de que Ostrava é a capital: esta é a última mina de carvão ainda em funcionamento daquele que foi o "coração industrial" do Império Austríaco Lukas Kabon/Anadolu Agency via Getty Images

Ainda não há dados que permitam saber se 2022 foi uma excepção ou uma inversão da trajectória histórica. Desde meados da década passada que a produção e o consumo de carvão têm vindo a diminuir de ano para ano e mesmo o volume de extracção do ano passado, representando uma subida face a 2021 e a 2020 (anos de pandemia), foi inferior ao de 2019 (41 milhões de toneladas).

Mas quando o carvão for deixado definitivamente para trás, o país passará a ter de importar quase toda a sua electricidade e estas três regiões ficarão, ainda mais, sem o que foi historicamente o seu principal ganha-pão. “O carvão ainda representa 40% do mix energético do país. E há 20 a 25 mil pessoas directamente empregadas no sector”, contextualiza Jan Kriz, vice-ministro do Ambiente checo.

O país vai receber 1,6 mil milhões de euros do Fundo para a Transição Justa, lançado há dois anos pela Comissão Europeia, com o objectivo de diversificar a economia local, reconverter o uso dos solos, promover a investigação científica e apoiar os actuais trabalhadores do sector carbonífero. Este volume de dinheiro faz da República Checa o quarto Estado-membro da União que mais vai receber. O recordista — e por larga margem — é a Polónia, a que estão destinados quase quatro mil milhões de euros.

É uma corrida contra o tempo, admite Jan Kriz. “Não é fácil executar estes planos devido às suas regras muito apertadas. É muito ambicioso ter de gastar 70% dos fundos até 2026.” Mais do que usar rapidamente o dinheiro, o desafio é usá-lo bem — e com um impacto concreto para aqueles a quem os programas se destinam. “Muitas vezes as pessoas têm a sensação de que isto não lhes vai trazer nada, é preciso comunicar muito bem. Estamos mesmo a tentar envolver toda a gente”, garante o governante.

Para poupar tempo, o país apostou nos chamados “projectos estratégicos”, de grande dimensão, e é na Morávia-Silésia que está a maior parte deles. A aposta é sobretudo em novos centros de investigação universitários que permitam atrair cientistas de categoria mundial, em novos espaços de fruição pública nos antigos complexos mineiros ou em incubadoras que permitam aumentar e diversificar um tecido empresarial que é historicamente raquítico.

Só que ainda nenhum destes projectos começou verdadeiramente a sair do papel e nem todos são consensuais. Em Ostrava, por exemplo, está prevista a construção de uma nova sala de concertos com capacidade para 1300 espectadores e que, diz o site do projecto, deverá “tornar-se um símbolo da cidade”, “tal como a Torre Eiffel em Paris ou a Ópera de Sydney”. Os promotores dizem que esta construção permite melhorar a imagem da cidade e da região, associando-a mais à cultura e menos a uma indústria poluente. Os críticos não entendem porque se vão gastar perto de quatro mil milhões de coroas checas (mais de 160 milhões de euros), das quais quase metade provém de fundos europeus.

Plano inclinado

Em Karviná, a mineração de carvão foi tão intensa desde meados do século XIX que o terreno da antiga vila cedeu 37 metros e a igreja local ficou inclinada para um dos lados. Esteve quase para ser demolida nos anos 1990, mas em vez disso as suas fundações foram reforçadas e hoje até serve de inspiração para um novo edifício (inclinado) que a Universidade da Silésia quer construir com apoio financeiro da União.

É ao lado do austero edifício da Faculdade de Economia, antiga sede local do Partido Comunista, que Daniel Stavarek espera ver nascer um centro de empreendedorismo que ajude a fixar jovens empresários na região. “Não haverá problemas em captar alunos. No estudo de viabilidade percebemos que há muita procura, não só da República Checa como do estrangeiro”, diz o vice-reitor para as relações internacionais. “A Morávia-Silésia estava cheia de grandes empresas ligadas às minas de carvão, por isso as pessoas estavam habituadas a ter um emprego bem pago e pronto”, explica. A região figura entre as que têm menos pequenas e médias empresas da República Checa, uma realidade que este projecto quer mudar.

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“O carvão ainda representa 40% do mix energético do país. E há 20 a 25 mil pessoas directamente empregadas no sector”, diz Jan Kriz, vice-ministro do Ambiente checo MARTIN DIVISEK/EPA

Mas essa é uma proposta essencialmente para os jovens. Para os actuais e antigos mineiros, o futuro pode ser mais incerto. “Muitos vão para casa com a muito boa indemnização a que têm direito, outros para a indústria automóvel”, diz Stavarek.

Outros, no entanto, conta Dalibor Miksanik, morreram por doenças associadas ao trabalho ou por suicídio, ficaram com problemas psicológicos permanentes ou começaram a beber. Houve também quem nunca mais tenha conseguido um emprego fixo e viva de biscates, revela este antigo mineiro. Considera-se um homem de sorte. Trabalhou em minas durante 26 anos e, ao fazer 47, foi aprender a ser maquinista de comboios. “Mas como eu gostava do contacto com as pessoas, decidi aprender a conduzir autocarros”, conta. Não tem saudades nenhumas dos túneis que ajudou a abrir à força de dinamite, de onde veio com problemas pulmonares e auditivos. Quase a fazer 55 anos, tem direito a reformar-se, mas não sabe se o fará. Tem medo de se cansar de não ter nada para fazer.


O PÚBLICO viajou a convite da Comissão Europeia