Era para se transformar num retail park, mas as Alagoas Brancas, um terreno húmido de cerca de nove hectares que fica em Lagoa, no Algarve, singularmente rico em fauna e flora, foi salvo pelo Fundo Ambiental, após anos de luta, e vai transformar-se num “parque urbano natural”, diz o autarca da Câmara Municipal de Lagoa, Luís Encarnação, que vai gerir aquele espaço.
“Insistimos que a situação tinha de ser resolvida”, diz ao PÚBLICO Ana Blofeld, que integra o grupo Salvar as Alagoas Brancas, o movimento de cidadãos que esteve na dianteira da luta de anos para evitar que aquele bioma desaparecesse. “Havia fundos do Fundo Ambiental, deviam ser usados para salvar as Alagoas.”
Em causa estão três terrenos colados onde se situam as Alagoas Brancas, na ponta sul de Lagoa, que vão ser adquiridos em 2024 por 3,67 milhões de euros vindos do Fundo Ambiental, de acordo com a informação dada ao PÚBLICO pelo Ministério do Ambiente e da Acção Climática (MAAC), que é responsável pelo fundo.
“Estamos a ultimar os pormenores do protocolo com o Fundo Ambiental”, explica ao PÚBLICO Luís Encarnação, presidente da Câmara Municipal de Lagoa. Haverá uma assembleia municipal extraordinária a 27 de Dezembro, e um dos temas será a revisão orçamental do próximo ano para se “poder acomodar a transferência” do Estado do montante vindo do Fundo Ambiental, explica o autarca.
É a câmara que vai comprar os terrenos e o protocolo vai definir as obrigações das partes. “O Fundo Ambiental, no âmbito das suas competências, transfere o montante para o município de Lagoa para adquirir um terreno que tem um reconhecido valor ambiental, e o município de Lagoa compromete-se, depois de o adquirir, a renaturalizá-lo, a criar um parque urbano natural, a devolvê-lo aos lagoenses preservando a biodiversidade que o espaço tem e o seu interesse ambiental”, diz Luís Encarnação.
O autarca prevê que a Câmara de Lagoa irá gastar “entre 750.000 e 900.000 euros” na requalificação do espaço.
Terreno alvo de um braço-de-ferro
Há cerca de um ano, quando o PÚBLICO visitou as Alagoas Brancas, não era de todo este o cenário auspicioso que estava posto em cima da mesa. Já havia estragos no terreno devido às obras iniciadas pela empresa Edifícios Atlântico S.A., que detinha um alvará para o loteamento em 11 parcelas de uma área de quase 5,7 hectares das Alagoas, para fazer um parque comercial ali.
O terreno era alvo de um braço-de-ferro. Ao lado do grupo Salvar as Alagoas Brancas estavam várias associações ambientalistas, como a Almargem, A Rocha Portugal, o Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA), a Associação Portuguesa para a Conservação da Biodiversidade (Fapas), a Liga para a Protecção da Natureza (LPN), a Sociedade Portuguesa de Ecologia (SPE), a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) e a Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável, e também o partido Pessoas, Animais e Natureza (PAN), todos para proteger o bioma.
A Edifícios Atlântico S.A. tinha sido recentemente salva de fazer uma Avaliação de Impacto Ambiental, com a ajuda da Câmara Municipal de Lagoa, que não queria travar a urbanização do território, alegando que isso teria um custo para o município por ter de ressarcir a empresa, e do Tribunal Central Administrativo Sul.
Após o início das obras, uma providência cautelar imposta pelo PAN tinha travado o trabalho das máquinas. Mas, como o PÚBLICO escreveu na altura, tinham sobrado “montes de terra revolvida, lixo disperso e novas acumulações de água que desnaturalizaram parte daquela zona húmida”. Ainda assim, era possível observar ao longe os charcos de água com aves de várias espécies.
Por estarem a uma cota especialmente baixa, as Alagoas Brancas intersectam um aquífero daquela região, tornando-as especialmente atreitas a inundações – o que é um sinal vermelho para a construção de edificado, de acordo com os especialistas –, mas proporcionando um refúgio com água para a biodiversidade.
No entanto, a percepção da importância das Alagoas Brancas enquanto bioma é recente. O local começou a ser estudado em 2008 pelo biólogo alemão Manfred Temme, depois de se aperceber da existência de bandos de aves naquela região. Ao longo dos anos, o especialista fotografou dezenas de espécies de aves que visitam o terreno anualmente.
Em 2019, um estudo da Almargem registou 114 espécies de aves associadas àquele território. Hoje, a contagem já acrescentou mais algumas dezenas. Entre as aves descobertas estão a íbis-preta (Plegadis falcinellus) e o caimão (Porphyrio porphyrio), o que confere ao espaço uma importância a nível nacional em termos de biodiversidade. Além disso, há ainda outros animais, como o cágado-de-carapaça-estriada (Emys orbicularis), com o estatuto de conservação em perigo de extinção, a rã-de-focinho-pontiagudo (Discoglossus galganoi) e o cágado-mediterrânico (Mauremys leprosa), que foram também identificados pelo estudo da Almargem e são alvo de protecção.
“Do lado certo da História”
As obras de Outubro de 2022 puseram em risco as populações locais de répteis, anfíbios e outros animais que não podiam fugir, o que justificou a providência cautelar interposta pelo PAN. Meses mais tarde, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé recusou a providência cautelar, o que fez aumentar o risco da destruição do bioma.
Mas uma reunião em Agosto com Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente e da Acção Climática, a pedido das várias associações ambientalistas, pode ter ajudado a mudar o rumo das coisas. “Quando percebeu que não íamos desistir, íamos até ao fim e que íamos pôr isto em tribunal novamente, acho que o ministro começou a mudar a sua opinião”, diz ao PÚBLICO Judite Fernandes, hidrogeóloga e vice-presidente do GEOTA, que esteve na reunião juntamente com representantes do Salvar as Alagoas Brancas, da LPN, da Almargem, entre outros. O PAN também pediu audições com o ministro para exigir uma solução que salvaguardasse aquele ecossistema.
O que é certo é que o MAAC resolveu apostar no uso do Fundo Ambiental para a compra daqueles terrenos, que acabou por ser votado dentro do pacote do Orçamento do Estado para 2024, em Novembro. O MAAC “mostrou o seu empenho para encontrar a melhor solução para, em articulação com o município de Lagoa, proceder à salvaguarda e gestão adequada desta zona húmida, bem como dos valores naturais aí presentes”, segundo as respostas enviadas pelo ministério ao PÚBLICO, e “assumiu o compromisso de apoiar, por via do Fundo Ambiental”, a criação de um “parque natural da cidade de Lagoa”.
Inês de Sousa Real, porta-voz do PAN, diz bem desta reviravolta. “Um dos pressupostos do Fundo Ambiental é a restauração e a conservação de espaços como as Alagoas Brancas”, explica ao PÚBLICO. “Olhamos para este tipo de opção política com bons olhos, só lamentamos ter sido tardia”, adianta. “É uma bela prenda de Natal para os animais das Alagoas e para as gerações futuras.”
Já para Judite Fernandes, esta era a única opção possível. “Em pleno século XXI, estar a aterrar uma zona húmida, com as alterações climáticas a fazerem-se sentir, para construir armazéns numa zona inundável, era uma aberração”, afirma. “Vejo que se puseram do lado certo da história.”
Compra de mais terrenos?
Só depois do protocolo entre a Câmara de Lagoa e o Fundo Ambiental é que os terrenos poderão ser comprados. Não há data para essa compra, assim como não há data para o parque estar pronto. Uma das perguntas que tanto os cidadãos como as associações ambientalistas e o PAN partilham é: como vai ser renaturalizada aquela área, qual vai ser o grau de protecção e o seu uso?
Segundo o MAAC, a “gestão caberá à Câmara Municipal de Lagoa, com o apoio da autoridade nacional para a conservação da natureza e biodiversidade, o [Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas] ICNF”.
O terreno “deverá ser uma área protegida promovida pelo Município de Lagoa e enquadrar-se-á como Área Protegida Local, estando o ICNF e o município em contacto constante para a execução deste projecto”, adianta por sua vez o ICNF, num comunicado enviado ao PÚBLICO.
Por sua vez, Luís Encarnação explica que a decisão última sobre a forma como o parque vai ser gerido caberá ao município. “Ainda que seja a nossa opção ouvir o ICNF, os especialistas da área do ambiente e as próprias associações ambientais, somos nós que vamos executar a obra e fazer a gestão do espaço”, afirma o autarca, garantindo querer “que seja um projecto participado, daquilo que são os principais stakeholders desta área e também daqueles que contribuíram para que chegássemos a esta solução”.
Uma das opções que estão a ser trabalhadas é a compra de mais terrenos à volta das Alagoas Brancas para aumentar o tamanho do parque. “Há essa vontade por parte do Governo”, diz Luís Encarnação. Mas essa compra “terá de ser sempre com o apoio do Fundo Ambiental”, adianta o autarca, que não revela quais seriam esses terrenos.
Inês de Sousa Real preferia que a gestão daquele espaço fosse de responsabilidade nacional e não local. “A câmara tem falhado ao longo destes anos”, diz, recordando que se o partido não tivesse colocado a providência cautelar em 2022, após o início das obras, o local já teria sido destruído.
Por seu lado, as associações que o PÚBLICO ouviu defendem uma participação alargada nas decisões sobre o futuro daquele espaço. “Os cidadãos e as organizações não-governamentais estão disponíveis para trabalhar com a autarquia, com o ICNF e com o Ministério do Ambiente para se restaurar o dano que ali foi feito de uma maneira que a natureza recupere o mais rapidamente possível e bem”, diz ao PÚBLICO Domingos Leitão, director executivo da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), biólogo e um dos directores científicos do estudo da Almargem. “Temos ali valores naturais quer da fauna, quer da flora que merecem isso. Os próprios cidadãos de Lagoa merecem.”
A decisão que foi tomada em relação ao uso do Fundo Ambiental para a compra dos terrenos foi “boa”, considera Domingos Leitão. Olhando para o futuro, para a gestão do parque, o biólogo defende que deverá haver uma região de protecção do habitat natural, onde as espécies podem refugiar-se, protegidas. “Tem de haver locais de não acesso”, adianta. “Depois terá de haver pontos de acesso, de fora para dentro, onde as pessoas poderão observar as aves e a flora.”
“O que quer que seja feito ali não pode ser feito sem uma participação ampla. Nós estamos disponíveis para participar”, afirma o ambientalista, recordando que existem no país bons exemplos de reservas naturais geridas por autarquias.
Educar a população
Por seu lado, Judite Fernandes lamenta que biomas associados a charcos, que normalmente têm pequenas áreas, acabem por estar fadados a tornarem-se reservas locais, quando têm uma importância internacional, já que são frequentemente locais-chave para a sobrevivência de aves durante as suas rotas de migração transcontinentais.
“Os animais têm de beber água”, recorda a vice-presidente do GEOTA. “Estas superfícies são vitais para a avifauna e para outros animais, são fontes de água doce onde se abrigam, mas também bebem água e comem”, diz a ambientalista, argumentando que no contexto das alterações climáticas, as zonas húmidas vão tornar-se cada vez mais essenciais. Mas “são sempre áreas tão exíguas, que nunca podem ter a pretensão de terem uma classificação internacional”, critica. “A importância devia ser pelos serviços que prestam, independentemente da área.”
Por tudo isto, a hidrogeóloga deseja que a gestão do parque seja “um processo participado”. Além disso, há uma grande oportunidade de educação ambiental e científica da população de Lagoa, diz: “Quando as pessoas são sensibilizadas e há divulgação científica, elas próprias são as primeiras a defender o espaço.”
Neste momento, as Alagoas Brancas estão cheias de água, descreve Ana Blofeld. “Os íbis-pretos são às centenas. O doutor Temme continua a fazer observações”, diz-nos a activista, que tem sido incansável na luta pela sobrevivência daquele espaço e ainda não está descansada. “A insistência que fazemos é para que as Alagoas Brancas tenham um estatuto de protecção que impeça que daqui a uns anos venha alguém com o plano de vender aquilo outra vez.”