Este comando de PlayStation foi feito a pensar nas pessoas com deficiência: “Existimos, precisamos de coisas, não sejam preguiçosos”

Chama-se Access e foi criado pela PlayStation a pensar nas pessoas com deficiência. Altamente personalizável, é o culminar de um longo caminho para um tipo de jogador “ávido de soluções”.

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O Playstation Access, o comando adaptado da Sony Daniel Rocha/PUBLICO?

Chama-se PlayStation Access (adivinharam, vem de “acessível”) e foi feito a pensar para a mais recente consola da linhagem da Sony, a PlayStation 5. É o primeiro comando da gigante japonesa de videojogos feito a pensar especificamente nas pessoas com deficiência motora. E foi recebido com um uníssono “finalmente”.

Mas vamos por partes. O comando Access é pouco maior do que um comando convencional – e igualmente leve. De um lado, um joystick (cuja cobertura se pode mudar, podendo optar-se entre uma bola ou cúpula); do outro um círculo rodeado de oito botões. O centro do círculo é clicável e todos os botões e as suas posições são personalizáveis, consoante a vontade do jogador: a caixa traz várias coberturas de botão, umas planas, outras curvas e ainda algumas salientes.

O objectivo, diz a PlayStation, é permitir que as pessoas com uma deficiência física joguem “de forma mais confortável e durante mais tempo”.

O preço do PlayStation Access ronda os 89,99 euros (cerca de 20 euros mais caro do que os comandos convencionais para a mesma consola) – e repetimos o nome porque se procurares os termos “playstation comando adaptado” ou “playstation deficiência” nos principais sites de retalhistas em Portugal é provável que não encontres. Mas existe.

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O novo comando tem um joystick e um "circulo" (clicável) rodeado de 8 botões Daniel Rocha

Tal como existem os clientes para este tipo de produto. Bruno Osório, 35 anos, é um deles. Fala com o P3 num evento promovido pela própria PlayStation, em Lisboa, mas a as atenções estão divididas entre a conversa e o jogo Gran Turimo 7 que decorre na televisão à sua frente. Bruno é um dos jogadores.

É engenheiro de formação, mas prefere ser descrito como um empreendedor – “percebi que era muito melhor na parte da gestão do que na engenharia informática”, confessa. Tem duas empresas e uma delas é a Adamastor Studios, um estúdio de videojogos que também presta “serviços a outras empresas nas áreas da realidade virtual, realidade aumentada, metaversos e por aí”. Está a caminho de uma terceira, apesar de não poder revelar ainda muito do que vem por aí.

A brincar, diz que é gamer desde que nasceu: “Acho que ainda estava na barriga da minha mãe e já estava a jogar”. Num tom mais sério, sentencia: “Os jogos funcionam como uma terapia. Quando tu tens paralisia cerebral e nasceste assim, é importante ter um escape, não é?”

“Os jogos foram um meio para eu poder expressar-me e fazer coisas que na realidade não podia. Os jogos tiveram importância para mim nesse eixo de aceitação”, explica. Pintaram toda a sua infância. “Tudo isto fazia parte do nosso quotidiano, íamos para a escola e falávamos de jogos”, recorda. “Eu nunca tinha jogado futebol a não ser no FIFA 96. Portanto isto marcou o meu crescimento.”

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Mário Trindade (à esquerda) e Bruno Osório (à direita) a jogar antes da conversa com o P3 Daniel Rocha

Começou na Mega Drive da Sega e ainda hoje passa horas a jogar. Do puro desafio, passou a olhar para os videojogos como uma forma “de arte”, que equipara a um filme no qual pode tomar decisões. E, finalmente, chegou ao desenvolvimento de jogos, uma das áreas a que se dedica actualmente.

Soluções para um “mercado ávido”

Depois de anos a jogar com comandos que não foram pensados para ele, o Access é muito bem-vindo. “É uma experiência muito mais agradável, ainda mais para mim que sou competitivo. O poder dizer ‘estou cansado deste lado’, e virar o comando. É muito interessante nesse sentido”, afirma. Ainda assim, a adaptação ao novo comando demorou uns quatro dias – afinal, a disposição é bem diferente da de um comando normal.

E nem tudo é perfeito. “Eu sou engenheiro e tendo a olhar para estas coisas e ver logo os próximos passos…”, avisa. O primeiro ponto a melhorar no futuro seria acrescentar um segundo joystick, uma vez que uma grande parte dos jogos actuais foi pensado partindo do pressuposto que há dois manípulos. E, para o futuro, Bruno gostava de ter uma opção que se aproximasse mais dos comandos convencionais, com algumas das funções do actual comando DualSense – como botões mais sensíveis, que respondam à força do jogador. “Mas os produtos têm vários estágios, várias versões” e “há que dar-lhes tempo”.

Esta não é a primeira solução que existe para pessoas com deficiência. A rival da PlayStation, a Xbox, já tinha um comando adaptado – chamado Adaptive Controller. Segundo Bruno, que ressalva que nunca experimentou esta opção, a configuração é bem diferente e há menos opções de personalização.

Contudo, é um passo no sentido certo: “A pessoa com deficiência já começa a ter poder aquisitivo a sério”, afirma o jovem empresário. Logo, é normal “que se comece a olhar para este tipo de jogadores e lhes dê a possibilidade de experimentar”.

“Obviamente que para uma pessoa como eu, que já correu todos os comandos que poderiam ter existido, é sempre outra experiência. É bom ver que as marcas começam a olhar para nós como um activo e não como aqueles coitadinhos que estão para ali sentadinhos”, afirma, peremptório, antes de concluir: “Até porque se não o fizerem, estão a perder um mercado que existe e espera ávido de fome por soluções nesse sentido. Há 30 anos, os meus pais tinham de procurar uma escola para eu estar no infantário, mas hoje em dia isso já não acontece. Todos os sectores da sociedade têm de se adaptar a uma determinada urgência e contexto em que as pessoas com deficiência também fazem parte.”

“Não precisas agora. Daqui a dez anos podes precisar”

Sofia, 31 anos, é engenheira de software “nas horas vagas”, brinca. Nas outras, dedica-se à produção de conteúdo sobre jogos na internet, onde é mais conhecida por Soficious – e é assim que prefere que a tratemos, diz ao P3.

Passa várias horas a “streamar” na Twitch, onde se foca maioritariamente em conteúdo sobre acessibilidade. “Sou uma das principais vozes da acessibilidade na nossa comunidade de criação de conteúdo de videojogos”, afirma. “Tento sempre falar da acessibilidade dos jogos e de todas as barreiras que existem actualmente.”

Mas porquê? “Foi uma mistura entre vida pessoal e profissional. Tenho uma deficiência visual – essa é a mais óbvia. Mas na minha área profissional, a acessibilidade é algo em que não focamos muito: o software tem de ser o mais acessível possível para qualquer tipo de deficiência, seja auditiva, visual ou motora.”

“Quando comecei a jogar mais, nos últimos anos, apercebi-me de algumas falhas nos jogos em termos de acessibilidade – às vezes coisas básicas, como o movimento de botões ou a personalização do texto no ecrã. E ninguém fala sobre isto”, lembra. Então começou ela a falar.

Há uns dias, apresentou aos seus seguidores este comando e notou que, para muitos, era a primeira vez que pensavam no assunto: “Há malta que diz ‘eu não preciso disso’. Não precisas agora. Se calhar daqui a dez anos podes precisar”, riposta.

Sobre o comando em si, e ressalvando que não faz parte do público-alvo, diz que “há jogos que ficam muito mais confortáveis quando jogados com o Access”. Diz que há quem comente “coisas como ‘não sei se é da velhice, mas eu jogo uma hora ou duas e já começo a perder a sensação das mãos’” – um problema bem real ao qual soluções como o Access podem dar resposta.

Soficious refere muitos dos pontos positivos mencionados por Bruno e acrescenta-lhe alguns: os botões (tanto no que toca à dimensão quanto à personalização), a facilidade que existe para configurar o comando ou a caixa que se consegue abrir “quase só com uma mão”.

Sobre os pontos a melhorar, elenca a falta de um manípulo extra (“Como é que não mencionaram isto durante o desenvolvimento?”) ou a ausência de vibração (o tal haptic feedback, que existe nos comandos DualSense e que traz “uma sensação extra do jogo”).

Ainda assim, no geral, concorda com Bruno. A mensagem é boa e está lá. “Há 20 anos não havia sequer acessibilidade nos videojogos. Ponto. Não era uma cena. Ninguém queria saber. A pouco e pouco está a começar”, nota. Coisas que há décadas eram encaradas como acessibilidade – como legendas – são hoje uma predefinição comum.

“Isto é a própria comunidade a impor-se, a dizer ‘nós existimos, precisamos de coisas, não sejam preguiçosos'.”

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