Foi ficando

O que mais o arreliava eram as conversas que ela mantinha com anjos ou com mortos, diálogos incompreensíveis, muitas vezes emoldurados com frases repetidas ritmicamente, como refrões.

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Foi ficando, a Alexandra. O Severo perguntava: E a gorda fica aqui porquê? Ajuda nas contas, ajuda na casa, dizia a São. Com esse corpanzil, argumentava o sogro, não há casa que chegue para todos, é pô-la a andar. A Alexandra sorria quando o Severo a insultava. Levava-o a casa do «velho da TV» para que ele visse televisão, e, enquanto isso, sentava-se a ler na soleira da porta. Uma ou duas horas depois, o Severo chamava-a, ó badocha, vamos para casa, e a Alexandra, com uma tranquilidade que para o sogro da São era irritante e desconfortável, empurrava a cadeira com suavidade e gentileza. Não tinha medo dele, e o Severo não compreendia como era possível não conseguir magoá-la com palavras — uma vez que fisicamente não seria exequível —, mesmo escolhendo o vocabulário mais pontiagudo. Mas o que mais o arreliava eram as conversas que ela mantinha com anjos ou com mortos, diálogos incompreensíveis, muitas vezes emoldurados com frases repetidas ritmicamente, como refrões, terminando sempre com a mesma expressão, ora sus, também ela indecifrável para o Severo. Um dia, perguntou-lhe sobre aqueles anjos e mortos com quem conversava, ó taralhouca, o que é isso de falar sozinha, e a Alexandra respondeu-lhe com uma seriedade que contrastava com a aspereza da pergunta, dizendo-lhe que as suas aparições eram um estado de espírito misturado com paisagem, com o contexto ou circunstâncias, gerando uma luz materializada em imaginação, outras em aparições mais concretas semelhantes à realidade, por exemplo, da jóia que a mãe nos deixou [a irmã olhava para o anel que usava no mindinho] levanta-se a nossa mãe, e dessa aparição surge uma narrativa cujo hábito vai solidificando a visão, pois as aparições engordam, ficam densas, a ponto de as podermos tocar e de nos tocarem. E são barulhentas as aparições, não todas, bem entendido, mas muitas delas atropelam-nos, são grandes camiões que não vemos chegar, porque não olhamos para os lados antes de atravessar determinadas partes da vida.

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