A fome em Gaza: um forno de barro, meio pão por dia, comida fora do prazo

Os níveis de fome no território são alarmantes, dizem agências da ONU. “Recuámos décadas”, diz um habitante do território.

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Crianças esperam para receber comida de uma organização de apoio em Rafah SALEH SALEM/Reuters
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A crise de fome na Faixa de Gaza tornou-se visível nas imagens de crianças com tachos ou recipientes em filas esperando conseguir uma refeição quente de um centro de ajuda – é uma crise sem precedentes em qualquer outra guerra entre Israel e o Hamas, sublinha o diário israelita Haaretz.

“Consigo um pão [árabe] ou meio durante o dia”, dizia num vídeo Muhammad al-Khaldi, uma criança que está com a família no Sul, depois da ordem de evacuação do Norte dada pelas forças israelitas. “Digo à minha mãe que tenho fome e ela diz-me que não há comida”, cita o Haaretz. “É assim que lidamos com isto, dia após dia.”

Uma mulher que vivia na Cidade de Gaza e agora está em Rafah contou ao Haaretz que tem dado aos filhos comida fora do prazo. “Podem ficar com diarreia, mas ao menos têm qualquer coisa para comer.”

O Programa Alimentar Mundial diz que entraram no território apenas 10% dos bens alimentares necessários para os 2,2 milhões de habitantes da Faixa de Gaza; a Human Rights Watch acusou Israel de estar a usar a fome como arma de guerra, “bloqueando deliberadamente a entrega de água, comida e combustível, impedindo intencionalmente a assistência humanitária, arrasando aparentemente zonas de agricultura, e privando a população civis de objectos indispensáveis à sua sobrevivência”.

Muitas pessoas têm cozinhado sopas com o que quer que consigam encontrar: há um fenómeno crescente de recolher quaisquer ervas ou plantas que encontrem em zonas que não tenham sido bombardeadas.

Há alguns produtos alimentares à venda mas a maioria das pessoas não conseguem pagar os preços que aumentaram cerca de dez vezes.

Um jornalista palestiniano, Motaz Azaiza, comentava já há semanas na rede social X (antigo Twitter) que em Gaza era mais fácil morrer num ataque do que comprar um quilo de sal. A videógrafa e jornalista Bisan Owda mostrava no Instagram uma imagem de uma laranja com bolor. “Foi o meu pequeno-almoço. Sei que não é bom para a saúde, mas qual é o valor da saúde face a tudo o que enfrentamos?”

“Recuámos várias décadas, fizemos um forno de barro, acendemos o fogo e cozemos o que tínhamos”, contou ao Haaretz Ahmad, que saiu da sua casa na Cidade de Gaza e está actualmente em Khan Younis.

Uma minoria com sorte consegue feijão ou lentilhas, com mais sorte ainda algumas malaguetas (em Gaza o picante tem um lugar especial, o que não acontece na Cisjordânia).

Segundo um relatório sobre o grau de fome em Gaza da iniciativa IPC, 90% das pessoas em Gaza estão a enfrentar fome em “níveis de crise”, passando com frequência um dia sem comer. E 40% destas pessoas estão mesmo em situação de emergência – um grau em que há subnutrição aguda e mortalidade em excesso – e mais de 15% em situação de catástrofe – um grau em que há níveis extremos de subnutrição e mortalidade em excesso. Isto quer dizer que é necessário um aumento urgente da ajuda alimentar a chegar ao território, sob pena de os números aumentarem ainda.

“Nunca vi nada na escala do que está a acontecer em Gaza”, disse Arif Husain, do Programa Alimentar Mundial., citado pela Associated Press. “As pessoas estão muito, muito perto de grandes vagas de doenças porque os seus sistemas imunitários estão muito enfraquecidos por não terem alimento suficiente”, disse.

Se os alimentos são um problema, a água também. Muita da água consumida não está a ser dessalinizada nem tratada, o que traz um risco especial para as crianças, alerta a Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância. A falta de água já era uma realidade antes do ataque do Hamas de 7 de Outubro, mas agudizou-se com as restrições às entradas impostas por Israel após o ataque, tal como o fornecimento de energia eléctrica, que passou de pouco a inexistente, e outras restrições existentes já desde que o Hamas tomou o poder no território em 2007.

“O acesso a água é uma questão de vida ou de morte”, disse a directora executiva da Unicef, Catherine Russell, e em Gaza as pessoas estão a ter de beber água com alto teor de sal ou poluída – um factor “dramático” para as crianças, que são mais vulneráveis a doenças devidas à água imprópria para consumo.

Alguma água potável estava a chegar ao território desde terça-feira, quando três centrais de dessalinização construídas pelos Emirados Árabes Unidos do lado egípcio da fronteira em Rafah começaram a funcionar.

A água chega para as necessidades diárias de 300 mil pessoas, longe de suficiente para o mais de um milhão de pessoas deslocadas no Sul, e continua a ter o problema do transporte, mas já permitia a algumas pessoas ter água potável. “Costumávamos trazer água do mar”, contou à Reuters Abu Sleyman, que ao beber a água comentou que esta “sabe a açúcar”, por não ter sal.

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