Como aqueles cães

Viu uma jovem cuja maneira hesitante de andar e alguns gestos lhe pareceram estranhamente familiares. A certa altura, a rapariga voltou-se.

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O professor, não tendo família próxima, foi enterrado no cemitério local. Só depois de chegar à serra, a Alexandra se apercebeu que conhecia o assassino, o Urso, lembrava-se dele dos tempos da clandestinidade, quando vivera naquela região usando o nome de Celeste, sim, lembrava-se do rapaz tenso, ensimesmado e silencioso a quem chamavam o Urso. Era como aqueles cães que, por medo e quando menos se espera, atacam a mão gentil que se aproxima. O que seria feito do outro, o que se chamava Moisés, interrogou-se a Alexandra, era um bom menino, esse, curioso, meio enredado na sua imaginação, bem diferente do seu melhor amigo, o calado e agreste Urso, de punhos cerrados, com olhos de ameaça. Caminhando do cemitério para a igreja, acompanhada pelas suas aparições e pelo professor Espinosa — nenhum de nós anda sozinho —, viu uma jovem cuja maneira hesitante de andar e alguns gestos lhe pareceram estranhamente familiares. A certa altura, a rapariga voltou-se, a Alexandra ficou uns segundos a olhar para aquele rosto que lhe era, mais do que familiar, bastante próximo, deixando-a confusa. Talvez seja uma aparição, pensou, arrebatada pela sensação onírica ou irreal daquele instante em que o tempo parou, fazendo coincidir o passado com o presente. O contexto não ajudava a desembaraçar a estupefação, tinha passado tanto tempo, mas aos poucos a dúvida desfez-se, era ela. A São teve uma reação idêntica e as duas, durante aqueles segundos em que se fitaram, voltaram a ser a Sãozinha e a irmã gorda. Quando a Alexandra a abraçou, a São — naquele momento, perfeitamente Sãozinha — deixou os braços colados ao corpo, não respondendo ao abraço da Alexandra — naquele momento, perfeitamente irmã gorda — por receio de a felicidade sentida poder esboroar-se, como sempre lhe costumava acontecer, e se desfizesse como uma boneca de papel debaixo de uma torneira. A São, a Sãozinha, começou a soluçar convulsivamente. A Alexandra, a irmã gorda, apertou-a ainda mais, fazendo com que o soluçar da São aumentasse a cadência.

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