Sangue do meu sangue

No comboio, foi conversando com o defunto, como se ele estivesse ali, sentado a seu lado, parecendo estar a falar sozinha. Algumas pessoas riam-se, outras batiam o indicador na testa.

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Não sei onde é que ele está e mesmo que soubesse não lhes dizia, é o meu filho, sangue do meu sangue, carne da minha carne, a gente não trai a família, não é?, depois de Deus lá no alto e da pátria no coração, não há nada mais sagrado, mas também, que importa?, não o vão apanhar, ele é esperto, deixem o caso ficar esquecido, não vale a pena o trabalho. O Severo fungou e tossiu e a São limpou-lhe o nariz e a saliva dos cantos da boca usando o cobertor que tapava as pernas do sogro, um cobertor castanho e verde cheio de buracos e nódoas de tinto. Calma, paizinho, repetia ela, mas o Severo não se acalmava, foi ficando mais e mais agressivo, os guardas também, não quero bater num aleijado, disse um deles, mas vai ter de ser. A São pôs-se à frente do guarda fazendo de parede entre este e o sogro — que continuava a gritar —, acabando por ser ela a apanhar uns estalos e uns pontapés nas coxas. Enquanto isso, no chão, repetia: calma, paizinho, calma. Regressaram a casa de madrugada, depois do interrogatório. A São caminhava com dificuldade e sentia-se enjoada, parando algumas vezes para descansar. Não pares, dizia o Severo, ou nunca mais chegamos a casa, continua, não tens idade para estar cansada.

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