“Uma só saúde”: é na educação que reside o sucesso

As saúdes humana, animal e ambiental são o coração da “uma só saúde”. Temos ignorado os aspectos socioculturais e educativos desta abordagem e, desta forma, estado virados para os nossos umbigos.

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A abordagem “uma só saúde” reconhece que a saúde humana (incluindo a saúde mental), a saúde animal e a própria saúde dos ecossistemas, estão intrinsecamente ligadas. Esta ideia não é nova. Durante a história da humanidade, foi sempre evidente para todos a influência do ambiente sobre os seres vivos. Era claro e imediatamente perceptível a ligação entre um ambiente “doente” e os seres vivos que nele residiam.

Era evidente e de senso comum, por exemplo, que um animal doente poderia originar doenças às pessoas a ele ligadas. Era lógico o motivo por que os pastores contraíam brucelose (febre de Malta), do mesmo modo que era evidente a razão por que era necessário manter distância de um cão agressivo (poderia estar raivoso). Também se evitava carne estragada pois havia a percepção lógica de que poderia fazer estragos. Era não só lógico como inquestionável e assim se manteve durante séculos. Em inúmeras escolas médicas era, aliás, ensinada a anatomia comparada numa verdadeira abordagem multiespécies.

Com a intensificação da agricultura, da industrialização, da urbanização, do sedentarismo e de avanços científicos (cite-se em particular a descoberta dos antibióticos e das vacinas), foi-se criando um fosso entre estas duas saúdes, que parecem até ter caminhado em sentidos opostos. Assumiu-se a ilusão da superioridade da espécie humana sobre as restantes. A humanidade foi negando o seu carácter animal e, a par disso, foi-se adensando o afastamento e a regra da não-partilha, tendo por consequência, durante décadas, a perda de muita informação de valor capital.

Simultaneamente, e decorrente da necessidade de gerar alimento ou explorar recursos para uma crescente população mundial, invadimos e destruímos habitats selvagens.
Ao massificarmos a utilização de produtos nocivos, mas que nos têm permitido gerar alimento em grandes quantidades, e num curto intervalo de tempo, colocámos no ambiente substâncias que ainda hoje persistem e provocam danos (como poderemos algum dia esquecer o livro Primavera Silenciosa, de Rachel Carson?).

A par de tudo isto, a globalização tem também provocado o transporte de agentes patogénicos para qualquer canto do mundo em questão de horas. Assistimos a isso com a rapidíssima disseminação de infecção pelo coronavírus SARS-CoV-2.

Sociologicamente, e do ponto de vista da medicina comparada, esta situação é muito estimulante, pois os habitantes das cidades por via desta “saudade”, por solidão ou por factores de outra natureza, trouxeram animais para dentro de casa, numa partilha total de modos de vida. Esta partilha de tempo e espaço é muito importante porque contribui para o bem-estar das espécies envolvidas, ajuda-nos a ultrapassar dificuldades afectivas, apoiar o envelhecimento activo, etc.

Em contrapartida, por desconhecimento, pode também envolver riscos que não podem ser negligenciados e aspectos que devem ser valorizados. Por exemplo: com estes animais de companhia, aos quais estamos afectivamente muito ligados, podemos, por exemplo, partilhar bactérias multirresistentes, infecções ou factores de risco e exposição comum para determinadas formas de cancro.

As saúdes humana, animal e ambiental constituem aquilo que se chama o núcleo mais íntimo da “uma só saúde”, mas é na área das ciências sociais e humanas que ironicamente radica o sucesso da sua implementação. O que temos vindo a fazer ao longo da última década, com honrosas excepções de abordagem mais holística, tem sido ignorarmos os aspectos socioculturais, comunicacionais e educacionais, e, desta forma, temos inexplicavelmente continuado virados para os nossos próprios umbigos.

A área da “uma só saúde”, ou “uma só medicina”, é não só fascinante como uma necessidade dos dias actuais, tornando-se pois obrigatória a sua operacionalização, concordemos ou não. A saúde pública é demasiado importante para ser apenas do domínio de uma disciplina. É uma área por natureza multidisciplinar e multifactorial.

Não haverá dúvidas de que uma aposta forte na educação e num estadio o mais precoce possível em que ainda não existam clivagens, a nível básico e secundário, será a resposta adequada e que permitirá obter melhores resultados. Aqui as mudanças podem ser verdadeiramente estruturantes e modificadoras de paradigmas, e assim, conseguiremos de forma efectiva e continuada construir um caminho que nos permita mitigar e anular os danos que herdamos de um século de afastamento.

Ouço com frequência que a opção certa passará por criar um órgão superior que vise pensar e desenhar políticas de Uma Só Saúde. Ora creio que essa opção estará condenada ao insucesso. Isso mais não será do que criar um enorme elefante branco (metáfora irónica) onde serão colocados todos os crentes já devidamente evangelizados que não falarão senão para si próprios. Defendo não ser este o caminho, não pode ser.

O tema é estruturante demais para ser encerrado num silo superior. Por analogia (e na verdade uma abordagem e temas tão em linha entre si) se compararmos aos temas da vital importância de modos de vida sustentáveis, ecologia responsável e medidas de mitigação às alterações climáticas, rapidamente perceberemos que a solução não é e nunca será, a criação de um ministério exclusivamente dedicado às alterações climáticas. Nada mais errado e mais hermético.

A solução é pensar e olhar o mundo de forma distinta e isso não se encerra num ministério nem por decretos, aprende-se por pequenos passos, no dia-a-dia em todas as acções que tomamos. O sucesso da sua implementação residirá em políticas públicas na área da educação que reforcem a importância vital desta abordagem.

A adopção da abordagem da “uma só saúde” estimula sinergias intersectoriais e a harmonização de metodologias de trabalho, processamento de dados e modelos para a avaliação, prevenção e gestão de riscos de origem animal, alimentar, resistência aos antimicrobianos (RAM) e outras ameaças emergentes. Este é o caminho que permite a tomada de decisão a vários níveis na persecução de objectivos comuns. A abordagem comparada permite também incorporar conhecimentos da saúde animal na saúde humana e vice-versa.

Os nossos animais de estimação estão, sim, sob a nossa responsabilidade, mas não estarão todos? Não temos nós a mesma obrigação e necessidade em relação à natureza? Ao assumirmos o papel de espécie animal dominante, e sem predadores, não nos compete esta tarefa nesta nossa casa comum? Temas com esta grandeza são transversais a todas as áreas, devem ser desenhados e incorporados em todas as políticas públicas, sem excepção. A par desta mudança de paradigma que se impõe, o tema deve ser introduzido em programas educativos desde tenra idade. Só assim conseguiremos avançar.

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