A Comissão Europeia apresentou nesta quarta-feira uma proposta para rebaixar o estatuto do lobo de espécie estritamente protegida para espécie protegida na Convenção de Berna sobre conservação de vida selvagem, para que a protecção deste grande carnívoro nos países da União Europeia (UE) possa vir a ser afrouxada também, tendo em vista a recuperação desta espécie em vários países.
A decisão é contestada por ambientalistas, por falta de fundamentação científica. Mas a proposta vai ao encontro do que grupos de pressão dos agricultores e dos caçadores reclamam há bastante tempo. “Esta é a primeira vez que a Europa propõe a diminuição do estatuto de uma espécie. É dar um sinal ao mundo de quê? De que a Europa está a entrar na contramão?”, interroga Bianca Mattos, analista de políticas da Associação Natureza Portugal/WWF (ANF/WWF), em conversa com o Azul.
Hoje as populações de lobo na UE são protegidas pela directiva Habitats. Para a alterar, é preciso mudar a Convenção de Berna sobre a Protecção da Vida Selvagem e dos Habitats Naturais na Europa. "Agora não consegue fazer isso, porque deixaria de cumprir a Convenção de Berna se o fizesse, uma convenção internacional, que é alargada a outros países para além da UE. Isto é para permitir que futuramente haja uma alteração do estatuto de protecção do lobo nas directivas europeias", explicou Bianca Mattos.
Em Setembro, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, fez uma declaração sobre os lobos com a qual cientistas e grupos de defesa do ambiente não concordam. “A concentração de alcateias em algumas regiões da Europa tornou-se um perigo real para o gado e potencialmente também para os seres humanos”, disse Ursula von der Leyen. E anunciou o lançamento de um processo de revisão do estatuto de protecção deste grande carnívoro, pedindo contribuições às partes interessadas.
Esta afirmação foi logo contestada por várias organizações não-governamentais, que consideraram “enganadora”. “A mensagem no comunicado de imprensa é enganadora, e influencia o resultado da consulta pública. Dizer que a concentração de matilhas de lobos se tornou um perigo para o gado e potencialmente para humanos não é algo que se baseie na ciência”, reagiu a WWF então.
Portugal resistiu
“Ursula von der Leyen apresentou o lobo como um problema para as pessoas, como algo que põe as pessoas em risco. Isso é totalmente descabido. Não existem notícias de incidentes graves de lobos com pessoas há muito tempo”, diz ainda Bianca Mattos.
“Embora os lobos possam atacar humanos, não há registo de ataques fatais de lobos na Europa nos últimos 40 anos”, diz um documento de análise da situação destes animais no continente, divulgado nesta quarta-feira pela Comissão Europeia. “Para reduzir ainda mais o já pequeno risco que os lobos representam para a segurança humana, há protocolos específicos para o problema de animais destemidos ou condicionados pela busca de alimento”, lê-se ainda neste relatório.
Mas von der Leyen não está sozinha nesta visão dos lobos. Avançou com a ideia de rever o estatuto do lobo depois de o Parlamento Europeu ter aprovado uma resolução, em Novembro de 2022, em que apelava à sua “mitigação do estatuto de protecção”, afirmando que “está a aumentar o impacto negativo dos ataques ao gado da população de lobos que está a crescer”.
Um grupo de 12 ministros do Ambiente da UE, incluindo o de Portugal, Duarte Cordeiro, reagiu em Fevereiro numa carta enviada ao comissário europeu do Ambiente, Virginijus Sinkevičius, na qual rejeitavam “inequivocamente a tendência da resolução para enfraquecer a protecção legal do lobo”. O gabinete do ministro do Ambiente disse ao Azul que a posição de Portugal continua a ser a mesma.
Apesar disso, a determinação da Comissão em propor a redução do estatuto do lobo prosseguiu. Esse trabalho resultou agora na proposta aos Estados-membros para que a UE apresente um pedido para reduzir o estatuto de protecção do lobo na Convenção de Berna. A proposta baseia-se essencialmente no aumento da população deste grande carnívoro, que, no entanto, não é uniforme em todo o território europeu.
De acordo com uma avaliação feita em 2018 para a Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação Natureza (IUCN) em 2018, seis das nove populações de lobos europeias eram consideradas “não ameaçadas”: três destas eram classificadas como “quase ameaçadas” (lobo ibérico; da península italiana e da Carélia; e as dos Alpes Dináricos-Balcãs); os Cárpatos e do Báltico eram consideradas de “menos preocupação”. Mas as restantes três (Alpes Centrais-Ocidentais; Escandinávia; e Europa Central) eram listadas como “vulneráveis”.
Esta classificação é citada num documento que faz uma “análise em profundidade” da situação do lobo na União Europeia, que acompanha a divulgação da proposta do executivo comunitário para alterar o estatuto da espécie Canis lupus.
O argumento citado pela Comissão é essencialmente o aumento da população – que é real, embora não seja uniforme por todo o continente. Estima-se que existam 20.300 lobos em toda a UE – um crescimento significativo em relação aos 11.193 que se calculava existirem em 2012, quando terminou o período de análise anterior.
“Os esforços de conservação do lobo começam a dar resultados. Mas agora que a espécie começa a demonstrar alguma recuperação, isso não deve ser visto como uma ameaça, porque de facto, não o é”, diz Bianca Mattos. “O que os dados científicos nos dizem é que a população precisa ainda de muitos esforços de conservação para conseguir um nível estável”, acrescenta.
A “análise em profundidade”, na qual se depreende que o executivo comunitário se baseia para propor a alteração de estatuto do lobo, não recomenda nenhuma política em concreto. Compila o que se sabe sobre a política de conservação do lobo na UE, sem emitir opiniões.
Pelo contrário, é realçado que há meios para incentivar a convivência entre humanos e lobos, e que têm altas taxas de sucesso quando são aplicados – quando não são usados, há choques (acontecendo o mesmo se houver práticas mais difíceis de compatibilizar, como a criação de gado ao ar livre). Os prejuízos com ataques ao gado têm aumentado com o crescimento das populações de lobos. “Mas, em alguns estados federados alemães com o maior número de lobos, a frequência dos ataques ao gado diminuiu significativamente nos anos mais recentes, o que foi associado ao uso de medidas preventivas adequadas”, lê-se no documento.
Quantas ovelhas come um lobo
“Existem várias medidas disponíveis para melhorar a convivência das pessoas com os lobos, que muitas vezes não são utilizadas. Isso é que é mau”, sublinha Bianca Mattos. A culpa pela inacção humana é atribuída aos animais: “Coloca-se um peso em cima das populações de lobo só pelo facto de algumas pessoas, algumas comunidades, alguns agricultores, não quererem fazer uso dessas ferramentas. Quando existe, inclusivamente, bastante financiamento europeu disponível para isso”, salienta.
A proposta da Comissão Europeia detalha a estimativa de que os lobos matem pelo menos 65.500 cabeças de gado nos países da União Europeia, 73% das quais ovelhas e cabras.
Estes números constam do relatório de análise divulgado nesta quarta-feira. Mas este número é posto em perspectiva no mesmo documento: “Considerando que há cerca de 60 milhões de ovinos na UE, o nível de depredação de ovelhas pelos lobos representa uma matança anual de 0,065%”. Este valor de contextualização não está na proposta da Comissão para o Conselho Europeu.
Esta proposta é vista com muito maus olhos pelas organizações de defesa do ambiente e dos animais – esta semana, antes da divulgação da proposta da Comissão, uma carta aberta de cerca de 300 associações dirigida a Von der Leyen expressava “uma preocupação significativa por ver que uma decisão política num tema tão crucial está a ser preparada de uma forma não transparente”. Foi lançada com base no comunicado de imprensa sobre os lobos na Europa de 4 de Setembro de 2023, “que incluía falsa informação sobre os lobos”, destacam.
A WWF apelou aos 27 que rejeitem esta proposta no Conselho Europeu. "Este é um anúncio escandaloso, que não tem justificação científica, é motivado apenas por motivos pessoais e debilita não só o estatuto de protecção do lobo, mas todos os esforços de conservação da natureza na União Europeia", comentou, num comunicado de imprensa, Sabien Leemans, analista de políticas de biodiversidade no departamento europeu da WWF.
Por um lado, Leemans refere-se à história conhecida de Von der Leyen, cujo pónei Dolly foi morto em 2022 por um lobo que se introduziu na quinta da família, no Norte da Alemanha.
Eleitoralismo
Por outro lado, a presidente da Comissão Europeia fica sob suspeita de tentar favorecer o seu Partido Popular Europeu nas eleições para o Parlamento Europeu na Primavera, indo ao encontro de uma liberalização da caça ao lobo defendida há anos por lobbies agrícolas e de caçadores. "É um presente de Natal antecipado" para a sua família política, comentou Sergiy Moroz, do Gabinete Europeu do Ambiente, uma coligação de organizações ambientalistas, citado pelo site Euractiv.
“A pressão para reduzir a protecção dos lobos vem, alegadamente, dos lobbies agrícola e de caçadores, mas os dados mostram claramente que as comunidades rurais compreendem e valorizam o papel do lobo na manutenção dos ecossistemas”, declarou Agata Szafraniuk, da organização Client Earth. “Há outras formas de lidar com a percepção de ameaças de grandes predadores sem abrir a porta à caça”, conclui.
Além disso, a ideia de que se está a ir contra as preocupações das comunidades rurais não cola, diz Bianca Mattos. “Não é isso que diz um inquérito publicado recentemente, feito em comunidades rurais em alguns países europeus. Os resultados mostram que 68% das pessoas acham que o lobo deveria continuar com o estatuto de protecção estrita. E 72% acham que que os lobos têm o direito de ocupar as terras que também são deles e de coexistirem em harmonia connosco”, salienta, citando o estudo da consultora Savanta sobre as atitudes face aos grandes carnívoros em dez Estados-membros (Portugal não está incluído), divulgado no fim de Novembro.