A faca da infância
Espetou a faca da sua infância, agora um canivete, na garganta do homem que se sentara à sua frente.
O medronho faz todos iguais, os ricos e os pobres, faz os homens caminhar de gatas como cães, derrota qualquer um, entra-lhes na garganta como uma palavra ao contrário, seca-lhes o esófago queimando tudo à sua passagem e enquanto desce para as tripas sobe para a cabeça. A princípio dá luz, como um deus que acende o dia usando o Sol, para depois apagar o universo, fechar os olhos dos bebedores, encerrando-lhes a lucidez e a reflexão numa cave da alma. Por vezes, quando a escuridão já não tem estrelas, por vezes, como um mestre de marionetas, o medronho levanta os seus homens e fecha-lhes os punhos e esses punhos procuram os narizes, os lábios, os olhos de amigos e familiares, de crianças, de conhecidos, de desconhecidos, de esposas, amantes, mães, filhas, irmãs, e só se apazigua com a dor, com o choro, com o sangue, com a tragédia. O deus caprichoso, capitoso e claro como a água da chuva, tem nessa transparência a possibilidade ambivalente de se deixar atravessar, com a mesma facilidade, por um poema ou pelo desvario da agressão.
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