Jorge Moreira da Silva: “Algumas empresas não são compatíveis com a trajectória para a descarbonização”
À frente da agência da ONU que vai pôr no terreno o fundo de perdas e danos, Jorge Moreira da Silva acredita que a transição climática só será possível com “mais solidariedade” com países pobres.
A cimeira do clima das Nações Unidas terminou na semana passada, mas o trabalho duro ainda agora começou. Uma das primeiras vitórias desta COP28 foi o acordo sobre o Fundo de Perdas e Danos, destinado ao apoio a países atingidos por catástrofes climáticas. Na tradução deste fundo para o terreno estará uma cara conhecida: Jorge Moreira da Silva, que actualmente lidera o Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projectos (UNOPS), o organismo da ONU para a execução de projectos de ajuda humanitária, desenvolvimento e construção da paz.
Acompanha as conferências do clima desde 1999 e conhece bem “o embaraço que existia” pela incapacidade de abordar o tema das perdas e danos: “Há 31 anos que os países em desenvolvimento dizem que estão a sofrer danos, prejuízos, consequências dos desastres climáticos por emissões que não eram suas.” Mas, agora que esta causa foi finalmente reconhecida e traduzida para o papel, é preciso eficácia na acção.
“O fundo de perdas e danos só pode ser eficaz se financiar projectos robustos no que diz respeito à compensação, à resposta ao desastre climático e à prevenção futura”, explica Jorge Moreira da Silva ao PÚBLICO, numa entrevista durante a COP28. “De pouco serviria termos um fundo se a forma de gerar projectos sólidos não estivesse garantida”, diz o director da UNOPS, que irá coordenar a parte técnica deste fundo em conjunto com o Escritório das Nações Unidas para Redução de Risco de Desastres (UNDRR).
Além do parco financiamento que ficou garantido nesta COP28 para o fundo de perdas e danos – menos de 800 milhões de euros, quando se estima que, anualmente, sejam necessários mais de 300 mil milhões para estas acções –, uma das grandes interrogações é como conseguir que este fundo global chegue às pessoas que mais dele precisam. “Esse é o mesmo dilema que se coloca em todas as áreas de desenvolvimento”, nota Moreira da Silva, que recorda que os projectos têm de estar baseados nas preocupações locais, ser conduzidos de forma transparente e estar focados nos resultados. Acima de tudo, “não são projectos em que o Norte decide como é que vai financiar o Sul”.
“Se me pergunta se já estamos lá? Não. Nós ainda não temos integrado suficientemente na ajuda ao desenvolvimento a preocupação dos países do Sul, e por isso é que acho que esta decisão sobre o Fundo de Perdas e Danos é tão relevante para a credibilidade do processo climático”, afirma o antigo ministro social-democrata.
Se o fim dos combustíveis fósseis era um dos grandes elefantes na sala que finalmente se começou a empurrar para fora, a questão do financiamento está longe de ser resolvida, com uma série de outras reivindicações dos países em desenvolvimento a que os países mais ricos têm falhado em responder. O fundo de perdas e danos surge aqui no fim de um caudal que começa, a montante, na redução das emissões – em que “os países do Norte têm de fazer mais” –, passando também pela solidariedade internacional, com “mais financiamento aos países do Sul para o combate às alterações climáticas”.
Transição justa
Jorge Moreira da Silva tem estado presente em quase todas as COP desde 1999, pelos diversos cargos que foi ocupando: eurodeputado (até 2003), secretário de Estado do Ambiente, quadro do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), ministro do Ambiente, director da Cooperação para o Desenvolvimento da OCDE e, finalmente, na liderança do UNOPS. Nestas décadas, descreve, “assistiu-se a uma mudança de larga escala”, com “uma enorme evolução na adesão das pessoas, na adesão das empresas, na convergência quanto à base científica. “O problema agora é um problema de velocidade. A velocidade não é compatível com aquilo que é necessário.”
Nesta COP, explica Moreira da Silva, foi feito um exame às políticas dos países no seguimento do Acordo de Paris, à sua ambição e à sua solidariedade. Para não dizer que chumbamos, poder-se-á dizer que “nesta avaliação intercalar o desempenho fica muito abaixo daquilo que é aceitável”, afirma. E para corrigir a rota, não basta aumentar a velocidade, com mais ambição na redução das emissões: “Precisamos de mais solidariedade. Só vamos ter mais ambição, em especial dos países do Sul, se tivermos mais solidariedade.”
E como resolver a questão económica, já que para muitos países o fim dos combustíveis fósseis poderá significar cortes em diversos sectores e, consequentemente, em largas fatias do PIB? “Não vale a pena estarmos a escamotear a verdade, no processo de descarbonização, vamos ter vencedores e vencidos”, responde Jorge Moreira da Silva. “Vamos ter de assumir que algumas actividades económicas e algumas empresas não são compatíveis com a trajectória para a descarbonização e para a economia verde.”
Mudança de paradigma é inevitável
Mas, em vez de atrasar a descarbonização e a promoção da economia verde porque existem alguns que vão ficar para trás, “o que temos de perguntar é o que é que os Estados podem e devem fazer para – perante a inevitabilidade de mudar o paradigma das economias, na direcção da descarbonização – proteger, requalificar, reconverter as actividades económicas e as pessoas que trabalham em actividades datadas, ultrapassadas, que se tornaram, em alguns casos, activos tóxicos, como é o caso do carvão”.
“Essa é a questão mais importante do ponto de vista das políticas públicas, porque é aí que o papel dos Estados é essencial.” No plano nacional, afirma, compete aos governos nacionais fazer este tipo de política, através dos orçamentos de Estado, para cuidar dos trabalhadores e apoiar a reconversão das empresas. Também no plano internacional é preciso uma estratégia concertada, porque não vale a pena fechar indústrias poluentes no Norte se depois forem para o Sul: “Tem de haver solidariedade internacional para que a única alternativa para os países do Sul não seja continuar a produzir petróleo, a consumir combustíveis fósseis e a produzir carvão”, continua.
“Tem de haver um mecanismo de solidariedade para que a métrica que verdadeiramente é aferida não seja o PIB per capita, mas o desenvolvimento sustentável. Os 17 Objectivos do Desenvolvimento Sustentável continuam a ser a melhor referência para orientar políticas que simultaneamente promovam o emprego e o crescimento económico, protejam o ambiente e assegurem uma maior igualdade”, considera Moreira da Silva.
Financiar países do Sul é essencial
Jorge Moreira da Silva fala do “dilema” com que é confrontado sempre que fala com líderes de países como Tanzânia, Burkina Faso, Bangladesh, Moçambique, países sobreendividados, cuja população está a aumentar de uma forma exponencial, que foram desproporcionalmente afectados pela pandemia e também pelos impactos da guerra na Ucrânia, “seja na restrição do financiamento que lhes é dirigido, seja no agravamento do preço das matérias-primas, como energia e alimentos”, com populações que ainda cozinham com combustíveis poluentes ou não têm sequer acesso à electricidade ou a água.
“Como é que vamos dizer que têm de descarbonizar, apostar nas energias renováveis e na mobilidade eléctrica, e não associarmos a esse pedido um cheque?”, questiona. “É evidente que esses países têm uma legítima expectativa de que o esforço de descarbonização que lhes está a ser pedido, para que não cometam os erros que nós cometemos, seja associado a uma maior solidariedade da nossa parte.”
Jorge Moreira da Silva explica que a cooperação para o desenvolvimento “é não só um acto de justiça, mas é também do nosso próprio interesse”: se não ajudarmos os países do Sul, não será possível travar as alterações climáticas. “Mesmo que a Europa seja totalmente neutra em carbono, não conseguiremos travar a mudança climática. A mudança climática não funciona numa lógica territorial. Assim como os países do Sul têm sido desproporcionalmente afectados pelas emissões que o Norte tem produzido, também os países do Norte serão afectados pela falta de solidariedade que têm quando não ajudam os países do Sul na descarbonização e na neutralidade até 2050.”
“O teste do algodão, como se costuma dizer, está na ajuda ao desenvolvimento”, insiste o social-democrata. “Sem ajuda ao desenvolvimento, sem mais financiamento aos países do Sul, nós não vamos cumprir o 1,5ºC [de aquecimento em relação aos níveis pré-industriais].”
Poder-se-á falar do exemplo de África, um continente que concentra o crescimento mais rápido da população, a maior pobreza no mundo e o maior número de pessoas sem acesso à electricidade ou a água e saneamento, mas que concentra também um enorme potencial de energia renovável. “Paradoxalmente, África representa 60% de todo o potencial solar no mundo e apenas atrai 1% dos projectos fotovoltaicos e apenas 3% do investimento em energia no mundo”, nota Moreira da Silva. “A possibilidade de vencermos este desafio do combate às alterações climáticas joga-se neste momento no campo da solidariedade. Se nós perdermos no campo da solidariedade, vamos perder no campo da acção climática”, vaticina.
“Não temos um problema de financiamento”
Jorge Moreira da Silva conclui com uma nota positiva: ainda é possível aumentar a velocidade e corrigir a rota. “Está perfeitamente ao nosso alcance”, sublinha. O que tem acontecido na energia, sublinha, “não é uma evolução, é uma revolução”, com a redução de preços das baterias, das energias renováveis e a penetração da mobilidade eléctrica.
Também o sector financeiro está a ajustar-se a novas regras no âmbito da taxonomia das finanças sustentáveis. “As empresas cotadas passaram a ter de partilhar informação sobre a sua exposição ao risco climático e a sua contribuição para a acção climática e para o desenvolvimento sustentável, e a sua cotação no mercado está a reflectir o seu alinhamento com o desenvolvimento sustentável.”
O que é que nos está a limitar a ambição, então? “Não temos um problema de financiamento, temos um problema de alinhamento de financiamento com as necessidades”, explica Moreira da Silva. “Faltam-nos seis biliões de dólares para a acção climática por ano. A indústria dos combustíveis fósseis recebe sete biliões de subsídios, que é um bilião a mais daquilo que nós precisaríamos para a acção climática. É uma conta fácil de fazer”, resume.
Também “entre activos do sector financeiro, fundos de investimento, fundos de pensão, investidores institucionais, mercado de capitais”, existem no total 466 biliões de dólares (cerca de 426 biliões de euros) disponíveis no mercado financeiro, afirma. “O problema não é um problema de existência de recursos financeiros, é falta de alocação dos recursos financeiros disponíveis para as necessidades mais emergentes. Bastava 1,5% de todos os recursos financeiros disponíveis serem dirigidos para a acção climática para termos o que é necessário para a descarbonização.”
Bastava também, por exemplo, que 1% desses recursos financeiros fossem alocados aos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável, que precisam de 3,9 biliões de dólares por ano (cerca de 3,5 biliões de euros), para que os países em vias de desenvolvimento conseguissem atingir a prosperidade, igualdade, sustentabilidade e competitividade, explica ainda. “O ponto não é sobre financiamento, é sobre o alinhamento do financiamento com as necessidades”, reforça.
O PÚBLICO viajou a convite da Fundação Oceano Azul