É possível que já tenhas visto esta pintura no TikTok. Se calhar até fizeste um vídeo a falar dela. Uma mulher jovem num vestido de casamento vitoriano a olhar para o espectador com desdém nos olhos.
Há três mulheres a rodeá-la, aparentemente a tentar acalmá-la. Não obstante, o olhar directo e impenitente da noiva domina o espectador pela sua intensidade. No TikTok, a pintura é muitas vezes acompanhada por música clássica ribombante, que faz lembrar o clímax de uma batalha – Requiem Dies Irae, de Verdi.
O olhar desta mulher tem sido proclamado como uma representação icónica de raiva feminina. No TikTok, utilizadores têm acrescentado texto à pintura de forma a reforçar o sentimento retratado.
“Pareces tão hostil”, lê-se num dos exemplos. “E, no entanto, cá estás”, termina o vídeo. “Provavelmente é porque os homens se sentem intimidados por ti”, lê-se noutro TikTok. “Tal como se devem sentir.”
De onde veio esta pintura tão invulgar? La Fiancée Hésitante (ou A Noiva Relutante) foi pintada em 1866 pelo artista francês Auguste Toulmouche (1829-1890).
Ainda que não seja um dos nomes mais conhecidos actualmente, Toulmouche dava-se com alguns dos pintores mais famosos de todos os tempos.
Foi casado com uma prima de Claude Monet e pediram-lhe que orientasse o jovem Monet, quando se mudou para Paris. Apoiou o aspirante a artista ao referi-lo ao próprio professor de Pintura, Charles Gleyre. Esta decisão ligou Monet a uma comunidade muito maior de artistas emergentes, como Renoir, Sisley e Bazille, que se tornaram conhecidos como “os impressionistas” – começando um dos movimentos de artes mais influentes da História.
Toulmouche era um pintor da escola romântica e especializou-se na pintura de moda (muitas vezes conhecida como pintura de vestuário). Este estilo era incrivelmente popular nos salões opulentos de Paris no século XIX. A pintura de moda centra-se nas peças de roupa mais luxuosas, mobiliário e quartos das casas da classe alta.
As pinturas mais famosas de Toulmouche – The Love Letter (a carta de amor), Vanity (toucador) ou Reading Lesson (lição de leitura) – são típicas deste estilo, retratando as donas de casa ricas de Paris.
A Noiva Relutante
A Noiva Relutante é um exemplo clássico de pintura de moda. Está dependente da roupa da mulher para contar muito da história, enquanto também mostra os estilos, acessórios e tecidos mais requintados. É aí que as semelhanças com outros quadros de Toulmouche acabam.
Há um alto nível de teatralidade nesta pintura. Ao colocar as mulheres na parte inferior do quadro, Toulmouche consegue usar os móveis ricos para dar ênfase à altura do quarto, que se parece com um palco. A justaposição da roupa bonita, o quarto ornado e as outras mulheres a olhar para a noiva (e não para o espectador) levam o olhar para o assunto principal do quadro, dando ênfase à noiva e ao seu olhar.
A Noiva Relutante marcou uma mudança de tom notável para Toulmouche, com o seu olhar directo e impenitente a interpelar de forma directa o espectador. Subverte as expectativas socioculturais daquele período histórico ao expressar resistência ao casamento.
A quebra da quarta parede (com a noiva a estabelecer contacto visual com o espectador) não era usada com frequência nesta escola nem por Toulmouche. Da mesma forma, as emoções negativas da noiva são muito diferentes das de outras pinturas de moda do mesmo período. Esta escolha fez com que a pintura se destacasse da de outros contemporâneos, que normalmente mostram mulheres muito mais modestas.
Antes deste trabalho, Toulmouche era conhecido por pintar exclusivamente “mulheres lindas, mas ociosas”. Um crítico contemporâneo, Émile Zola, deu aos modelos de Toulmouche o epíteto de “bonecas deliciosas” e outro crítico do período disse que as mulheres das suas pinturas “não tinham cérebros”.
Toulmouche e o olhar Fleabag
Então porque é que esta pintura se tornou popular agora? O olhar resoluto da noiva foi elogiado pela forma como mostra a raiva feminina, um conceito historicamente difícil de captar para os pintores homens.
No passado, a raiva feminina foi retratada como um de dois extremos – silenciosa, calma e interna, ou externa, com gritos e histeria. Esta dicotomia limitante é misógina.
Uma versão moderna d’A Noiva Relutante é a personagem Fleabag, da série aclamada pela crítica com o mesmo nome, de Phoebe Waller-Bridge. A série, que segue uma protagonista corajosa e sincera, muitas vezes quebra a quarta parede ao olhar directamente para o espectador.
O olhar directo (conhecido como o “olhar Fleabag”) confronta o espectador com incredulidade em relação ao que é considerado uma experiência feminina “aceitável” e convida-os a reconhecer as suas dificuldades.
O olhar da noiva estende-se ao espectador numa forma que faz lembrar Fleabag, na medida em que também pede que se considere a posição em que se encontra. A sua raiva sobressai em relação à brandura do mundo de mulheres que a rodeia, e desafia quem a está a ver a colocar-se na sua posição.
Ao participar nesta tendência, os utilizadores do TikTok estão a deixar que as suas emoções se reflictam pela expressão desafiadora da noiva. Ao fazerem isso, estão a recontextualizar a arte de forma a integrar uma conversa mais moderna, fazendo que o trabalho sobreviva e se mantenha relevante.
Tal como as mulheres que se sentiram vistas com A Noiva Relutante quando se estreou em Paris, em 1866, as jovens de hoje vêem as suas próprias frustrações e raiva reflectidas na pintura de Toulmouche.
A arte consegue ajudar-nos a entender o que liga a emoção e a experiência. E se a popularidade actual do olhar desta noiva nos diz qualquer coisa, é que a raiva feminina continua a consumir-nos com tanta força como antes.
Exclusivo P3/The Conversation
Cydney Thompson é doutoranda na Faculdade de História do Trinity College, em Dublin