Êxito da Lei do Restauro da Natureza dependerá de fundos e “acção rápida”

Depois de a lei europeia ser aprovada, Estados-Membros vão ter de fazer plano para o seu território. Além de fundos europeus, artigo da Science defende necessidade de fundos privados.

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Ao todo, estima-se que 80% dos habitats europeus estejam degradados Enric Vives-Rubio/ARQUIVO
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A acção empenhada e rápida, as ferramentas certas e o dinheiro: estes são os três importantes factores para o sucesso da Lei do Restauro da Natureza, a nível da União Europeia (UE), identificados num artigo publicado na Science, nesta quinta-feira, que analisa as potencialidades e as possíveis armadilhas da importante legislação que quer restaurar os ecossistemas, contribuindo para a estratégia da biodiversidade da UE.

“O sucesso da Lei do Restauro da Natureza [LRN] depende de uma acção rápida e da disponibilização de instrumentos eficazes para atingir os objectivos em prazos curtos, reconhecendo o tempo necessário para a recuperação da natureza”, lê-se no artigo assinado por Daniel Hering, do Departamento de Ecologia Aquática, da Universidade de Duisburg-Essen, em Essen, na Alemanha, e de mais 15 investigadores de diferentes instituições académicas de vários países europeus como Espanha, Finlândia, Irlanda, Noruega, Reino Unido e Países Baixos.

“A disponibilização de regimes de financiamento determinará se a LRN dará resposta às pressões actuais e impulsionará as transições tão necessárias”, lê-se ainda no artigo. “Dada a urgência das crises mundiais, a Europa não se pode dar ao luxo de adiar; não se deve perder a oportunidade de adoptar e aplicar uma lei ambiciosa e de mostrar a liderança mundial.”

A LRN estabelece uma série de objectivos de recuperação de habitats tanto em terra como marinhos, de rios, ecossistemas florestais e urbanos (ver caixa). Esses objectivos de restauro têm percentagens definidas crescentes relativamente a 2030, 2040 e 2050. Por exemplo, a nível de sítios que pertencem à Rede Natura 2000, a legislação exige que se atinja o bom estado em 30% da área até 2030, 60% até 2040 e 90% até 2050.

Ao todo, estima-se que 80% dos habitats europeus estão degradados. Segundo a Comissão Europeia, calcula-se que cada euro investido no restauro da natureza renderá entre oito e 38 euros. Além disso, o restauro dos ecossistemas ambiciona evitar 25% das emissões de dióxido de carbono vindas do solo, ajudando a cumprir o Acordo de Paris.

Mas a aprovação da LRN, produzida pela Comissão Europeia, passou sérias dificuldades este ano. Um movimento do Partido Popular Europeu (PPE, onde se insere o PSD e o CDS), liderado pelo eurodeputado alemão Manfred Weber, arquitectou uma estratégia de bloqueio da lei. O grande argumento do PPE é que a lei iria pôr em causa a soberania alimentar da União Europeia, apesar de a comunidade científica dizer que, pelo contrário, era a protecção dos ecossistemas, dos seus serviços e dos solos que poderiam garantir essa soberania.

Em Julho, o Parlamento Europeu manteve a lei à tona da água, depois de uma luta renhida pelas comissões, mas não sem algumas vitórias por parte do PPE. Uma delas diz respeito à “introdução de um ‘travão de emergência’ que suspende a aplicação da LRN em campos agrícolas, em toda a sua área, sob circunstâncias excepcionais que afectem a disponibilidade de terra para a produção agrícola”, de acordo com o artigo da Science.

Em Novembro, depois das discussões entre a Comissão Europeia, o Conselho Europeu e o Parlamento Europeu, o famoso trílogo, a União Europeia aprovou um acordo final para a LRN que agora terá que ser aprovado a nível do Conselho Europeu e do Parlamento Europeu, naquilo que é visto como sendo uma formalidade, já que o documento é o resultado da discussão entre as três instituições.

Planos nacionais

É neste contexto que o novo artigo da Science foi publicado, onde se elenca os desafios que estão por vir. “Apesar de os objectivos [da lei] serem juridicamente vinculativos, as medidas para os alcançar serão a partir de acções voluntárias por parte dos proprietários de terra e de águas e por parte dos gestores, que necessitariam de aceitar uma co-responsabilidade e possuir a capacidade de resposta”, de acordo com os autores. “Isto necessita não só de investimentos financeiros, mas também de instituições que dão apoio à cooperação, à aprendizagem entre pares, a modelos de negócio que sustentem mudanças no uso dos solos, e a uma aceitação social para trabalhar com a natureza.”

Como a lei não vai ter de ser transposta para a legislação dos vários Estados-membros, o trabalho vai passar directamente para cada país, que terá de começar por elaborar um Plano de Restauro Nacional, cujo modelo é definido pela Comissão Europeia.

Nesse plano, “os estados membros indicam quais os habitats e locais que vão restaurar, qual é o estado de conservação, necessidade de restauro e medidas que vão adoptar para restaurar, e qual é o período de tempo para aplicar as medidas”, enumera ao PÚBLICO a bióloga Ana Mendes, investigadora da Universidade de Évora, que fez parte do grupo de peritos legais da Sociedade Europeia para o Restauro Ecológico que emitiu pareceres para a Comissão Europeia sobre a LRN e já publicou vários artigos científicos sobre legislação e restauro ecológico.

“O maior desafio tem a ver com os fundos”, refere Ana Mendes, apontando para outras leis europeias, na área da conservação da natureza e do ambiente, em que a falta de fundos acabou por impedir que elas fossem devidamente aplicadas.

No caso do restauro de habitats, alguns dos projectos terão de ser de grande envergadura, vão necessitar de maquinaria pesada e do conhecimento técnico associado. Ana Mendes dá o exemplo do que já está a acontecer na Austrália em termos de restauro de ecossistemas. “Na Austrália já estão a fazer restauro de áreas de 100.000 hectares. Usam-se camiões TIR, coisas enormes a uma escala muito grande”, descreve.

Embora Portugal tenha um tamanho muito menor, a investigadora defende que vai ser necessário a conjunção do conhecimento técnico do Estado, das universidades e a capacidade das empresas de levar a cabo os projectos. “Tudo isto são trabalhos que envolvem bastante dinheiro, mas devemos ver como oportunidades de novos modelos de negócio”, defende. “Na Austrália, estes modelos já estão muito estabelecidos e a indústria do restauro é algo com peso enorme e que movimenta muito volume financeiro.”

Prova dos nove” para o sector agrícola

Além do financiamento da União Europeia, da vontade de reverter fundos regionais para o restauro da natureza, o artigo também refere a importância do financiamento privado. “A União Europeia e os Estados-membros têm a tarefa de mobilizar financiamento privado para o restauro, apoiando modelos de negócio apropriados que incorporem a recuperação de custos”, lê-se no artigo.

Esse financiamento poderá vir como contrapartida dos impactos ambientais das empresas ou do mercado do carbono, como refere o artigo. “Temos de trabalhar seguramente com as empresas, uma parte da compensação das suas actividades devia ser transaccionada a nível dos mercados de carbono para a implementação de acções de restauro”, adianta Ana Mendes, defendendo que vai ser necessário as empresas ganharem capacidade técnicas para fazer isto.

Um sector que vai estar na berlinda é o agrícola. Da experiência que Ana Mendes tem, no campo de restauro da natureza, há cada vez mais agricultores preocupados com os aspectos ambientais. “É importante que as empresas olhem para isto como uma oportunidade, principalmente no sector agrícola. Temos aqui a prova dos nove para a sua contribuição”, diz.

O que quer que aconteça, o restauro da natureza vai demorar tempo. “Andamos há muitos anos a degradar”, afirma a bióloga. “Não podemos ter a veleidade de pensar que, de um momento para o outro, conseguimos fazer tudo. Temos que ter consciência que estes processos demoram o seu tempo.”

Nesse sentido, e tendo em conta que haverá eleições europeias (e, em Portugal, legislativas) em 2024, a estabilidade das políticas de conservação de natureza é fundamental, adianta o artigo na Science: “A estabilidade no desenvolvimento legislativo é crucial, considerando que o restauro da natureza necessita de perspectivas a longo prazo.” Ou seja, é necessário que os diversos campos políticos puxem para o mesmo lado.