Porque estão as ruas de Lisboa e Porto cada vez mais cheias de carros?

Grandes obras públicas não explicam por si só altos níveis de congestionamento. Áreas metropolitanas sofrem com pressão dos carros e pouco planeamento. Mas número de TVDE em circulação também é razão.

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A incapacidade de penalizar a entrada dos automóveis no centro das cidades é apontada como uma das razões para o actual cenário Rui Gaudencio
PP - 16 DEZEMBRO 2023 - PORTO - TRANSITO NA BAIXA RUA S ILDEFONSO 
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Trânsito na baixa do Porto, Rua S. Ildefonso Paulo Pimenta
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Dizer que o trânsito sempre foi complicado em Lisboa e Porto é uma redundância. A realidade de décadas parece, todavia, ter-se agravado substancialmente nos últimos meses. Quem anda nas ruas depara com engarrafamentos constantes, pautados por uma incessante banda sonora de buzinas, mas também nuvens de fumo saído dos escapes. As obras de grande envergadura em curso em ambas as cidades ajudam a explicar o problema. Mas só em parte. O problema tem uma origem mais estrutural, dizem os especialistas: há demasiados carros a circular.

Apesar de não estarem disponíveis dados mais recentes sobre o número de carros que entram diariamente nas cidades de Lisboa e Porto, sabe-se, porém, que ele tem aumentado nas principais auto-estradas das duas áreas metropolitanas. Os números mais recentes relativos à capital são de 2018, quando nela entravam 370 mil carros por dia. E se podem ser encontradas explicações conjunturais, há quem olhe para o problema de forma pragmática: os carros entram na cidade, porque lhes é permitido.

“Portugal tem tido pouca coragem, as restrições ao automóvel têm sido tímidas, porque isso afecta a votação dos partidos”, diz Mário Alves, da MUBI, considerando que “não há uma mensagem clara na estratégia a seguir em relação ao automóvel”. “Temos mensagens ad hoc, dá-se uma no cravo e outra na ferradura, consoante convém”, critica o activista e académico especialista em mobilidade.

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Rua da Alegria, Porto Paulo Pimenta

Uma apreciação coincidente com a de Ksenia Ashrafullina, membro do movimento cívico Lisboa Possível, que no debate recentemente organizado pelo PÚBLICO e pela associação ambientalista Zero, sob o mote “Para quando menos carros em Lisboa?”, disse algo mais ou menos parecido. “Sinto que a cidade não tem as prioridades bem definidas. Em vez de optimizar a saúde, sinto que está a optimizar o carro. Se Lisboa tivesse um novo hino, seria qualquer coisa como ‘Quero tirar carros / não quero tirar carros’”, comentou naquele momento.

Nesse debate, ficou a saber-se, pela directora municipal da Mobilidade de Lisboa, Ana Raimundo, que a cidade porá em funcionamento, até ao início de 2025, o sistema de videovigilância que permitirá, através da Zona de Emissões Reduzidas (ZER), controlar a entrada dos carros mais antigos e poluentes. Algo que estará apenas dependente das negociações que a autarquia da capital desenvolve com a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) sobre o uso de câmaras de vídeo para registarem as matrículas dos carros que entram no perímetro da ZER.

O sistema, cujo intuito original era inibir a circulação no centro da capital dos veículos mais antigos – por serem mais poluentes –, foi instituída em 2011, quando António Costa era o presidente da câmara. Mas, na verdade, nunca passou de uma medida simbólica, por impossibilidade efectiva de a fiscalizar. Tirando umas quantas multas avulsas, logo nos primeiros meses, resultantes da acção de um ou outro agente mais zeloso da Polícia Municipal, os seus efeitos foram inócuos. Algo que deverá mudar em breve.

O controlo de acessos ao centro da capital através das ZER é, precisamente, “uma das medidas fundamentais” para acabar com o congestionamento, diz o criador do sistema, Fernando Nunes da Silva, ex-vereador da Mobilidade de António Costa, entre 2009 e 2013. “Deixei tudo pronto para o sistema funcionar, mas isso nunca aconteceu”, critica o professor universitário. “Essa não é, todavia, a única coisa a fazer. Intervir em várias áreas ajuda a encontrar uma solução global. Tem é de haver uma visão e não fazer alterações cada vez que há uma mudança de decisores. Mudar hábitos e ter políticas estruturadas em termos de mobilidade dura tempo”, observa.

Nunes da Silva considera que “o volume de tráfego ter aumentado não justifica, só por si, os níveis de congestionamento que se observam em Lisboa”. Há outros factores, e eles confluem na tal falta de visão estruturada. “Aquilo a que estamos a assistir é resultado da inconstância política. Assim, não se consegue fazer nada”, critica. Uma frustração partilhada por Mário Alves, que também lamenta a falta de medidas estruturadas e consequentes e lembra que Lisboa “é a única capital europeia que não tem um plano de mobilidade”. Um sintoma dessa aparente falta de compromisso, nota, tem sido a inexistência de resultados das ZER e da “Quinta Circular” por ausência de fiscalização.

A dita “Quinta Circular” foi a solução encontrada pela autarquia da capital, em Abril passado, através da criação de uma zona-tampão, para evitar que os carros confluíssem para o centro. Tudo para não complicar ainda mais os transtornos trazidos por um conjunto de grandes empreitadas, como as da Linha Circular do metro ou do Plano Geral de Drenagem de Lisboa. Outra das obras que a justificou foi a reparação dos colectores da Rua da Prata, que colapsaram em Dezembro de 2022, obrigando ao corte do trânsito.

Desde então, a Rua da Madalena tem servido como principal via de ligação rodoviária entre a zona ribeirinha e a Baixa e Avenida Almirante Reis. Situação instituída em definitivo, a 24 de Novembro, quando a Rua da Prata foi aberta apenas ao eléctrico 15, mas também a bicicletas, trotinetas e peões. O presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, Miguel Coelho (PS), tem-se queixado do congestionamento causado pelo novo esquema de circulação.

A alternativa pedonal

No Porto, as obras de expansão da linha do metro estão a provocar desvios de trânsito em zonas mais centrais da cidade, como São Bento, Praça da Galiza ou Casa da Música, com a normalidade da Avenida a Boavista a ser também perturbada pelos trabalhos para instalar o canal de metrobus.

Há uma conta simples de fazer: as ruas estão desenhadas para comportar determinada procura. Se se diminui o espaço disponível, como acontece com as obras, sem um mecanismo que actue na procura, vai haver uma sobrecarga. É nesse momento que estamos.

Acresce que a pressão automóvel que se verifica noutras zonas da cidade, como na Via de Cintura Interna (VCI) ou no Nó de Francos, pouco ou nada tem que ver com as obras, dizem especialistas. Há grandes tendências, como a deslocação de pessoas de zonas rurais para urbanas ou questões estruturais, como as políticas públicas de ordenamento do território, que favoreceram a dispersão da construção e o uso do carro e ajudam a explicar este cenário.

Estamos também num ciclo económico em que há emprego, o Porto tem recebido grandes investimentos privados, comenta o professor de arquitectura na Universidade do Minho Ivo Oliveira. O académico soma-lhe o turismo e as empresas associadas ao alojamento local, que precisam de estar na rua (muitas delas de carro). A Câmara Municipal do Porto tem-se recusado a limitar o papel do carro na cidade enquanto não terminar este ciclo de grandes investimentos em transporte colectivo, mas, para Ivo Oliveira, que também é investigador no Laboratório de Paisagens, Património e Território, já havia condições para o fazer antes. Pelo menos, desde que o metropolitano atravessa a cidade.

“Embora a rede de metro não seja muito extensa [no Porto], se fizermos círculos de 600 metros à volta de cada estação, percebemos que conseguimos chegar de metro a uma parte significativa do município”, diz. Portanto, desde há 20 anos que a autarquia devia ter apostado numa “profunda valorização do espaço pedonal da cidade”, defende. Era “um sinal muito forte”, mas não aconteceu. Essa rede para caminhar, que alimentaria o metro, poderia também ser articulada com acessos cicláveis, exemplifica.

Mas essas soluções deveriam ser aplicadas numa altura em que as cidades são atravessadas por obras? O problema, sublinha Frederico Moura e Sá, professor de urbanismo da Universidade de Aveiro, é que as acções não poderiam ser avulsas, mas integradas num plano de mobilidade “para sabermos onde e de que forma queremos chegar”. Ao PÚBLICO, a Câmara Municipal do Porto (CMP) diz que está a elaborar o seu plano de mobilidade urbana sustentável, mas sem avançar datas.

Por causa do congestionamento, o presidente da CMP, Rui Moreira, chegou a ameaçar não deixar abrir mais nenhuma frente de obra do metro na cidade. “Mas não é acabando com as obras do metro que resolvemos o congestionamento”, reforça Frederico Moura e Sá. É a apostar em políticas públicas que dissuadam o uso do automóvel no centro da cidade, como a tarifação de estacionamento, e incentivem ao uso dos transportes públicos. O especialista diz que as zonas universitárias da Asprela e do Campo Alegre e a Baixa do Porto são os pontos que mais viagens geram em toda a Área Metropolitana do Porto e que dar alternativas ajudaria a retirar carros da cidade.

Em vez disso, a Avenida da Boavista vai receber um canal de metrobus que não terá ligação ao metro, em Matosinhos, e não servirá o Campo Alegre. A Linha Rubi, que vai ligar a Casa da Música, no Porto, a Gaia, passando pelo Campo Alegre – onde a CMP pediu a instalação de um parque de estacionamento, o que convida a viagens de carro – vai ter a sua própria ponte, em vez de retirar espaço aos automóveis na Ponte da Arrábida. “Assim, mantemos a capacidade rodoviária instalada, enquanto temos a alternativa ao lado”, critica.

O sistema de portagens não ajuda. A Circular Regional Exterior do Porto (CREP) é o caminho mais longo para quem vem do Sul e quer ir para algum território a norte do Porto e, além disso, é portajado. O percurso mais curto – a VCI – é gratuito. Para Ivo Oliveira, não faz sentido “fazer este investimento de muitos milhões de euros na Linha Rubi, sem fazer uma profunda reflexão sobre o atravessamento da Ponte da Arrábida”. E avisa: “Se esse eixo continuar com as características que hoje tem, vamos continuar a ver crescer os atravessamentos da ponte.”

Parte do trajecto

Assumindo que o carro vai continuar a ser parte da equação – o arranque turbulento da operação dos autocarros da rede Unir esteve longe de servir como a melhor campanha pelo uso dos transportes públicos –, há uma palavra-chave para evitar que o centro da cidade fique repleto de carros: intermodalidade. Com urbanização dispersa, “o carro vai continuar a fazer parte dos trajectos”, reflecte Ivo Oliveira. “Mas é preciso fazer com que ele seja apenas parte do trajecto”, diz. Olha para o território da AMP e aponta que, em alguns casos, seria preciso introduzir infra-estruturas de grande complexidade.

“Quando fazemos a A3 entre Braga e Porto, passamos por cima da ferrovia, estamos a 300 metros de uma estação de comboio e nem nos apercebemos”, refere. Instalar parques de estacionamento dissuasores nestes pontos, servindo as vias rodoviárias, poderia ser uma solução, explica. Permitir-se-ia assim a criação de sistemas tarifários que possibilitassem estacionar e, ao mesmo tempo, aceder ao transporte público. É possível apostar já nessa intermodalidade, sustenta, “com infra-estrutura que já existe”.

Se isso é aplicável à ferrovia, o mesmo se pode dizer da bicicleta, diz Ivo Oliveira, dando como exemplo a ciclovia que também já existe e que acompanha o rio Leça, ao longo de sete quilómetros. “Isto quer dizer que a interface poderia ser feita com outras estruturas mais suaves”, refere. Mas admite que as condições de segurança para ir para o centro do Porto em bicicleta são escassas. Há poucas ciclovias e o trabalho teria de ser feito em várias frentes, alterando o desenho das ruas para reduzir velocidade dos carros.

“Os activistas querem sempre mais ciclovias. Mas nós achamos que o mais importante é retirar os carros. Aquilo a que estamos a assistir em Lisboa e no Porto é ao resultado de décadas de desleixo e de falta de estratégia. A pandemia poderia ter sido uma boa oportunidade para fazer uma série de coisas, mas não foi aproveitada”, critica Mário Alves, sem esconder a frustração. “O que as cidades deveriam fazer o mais depressa possível seriam planos de mobilidade abreviados e pôr restrições em prática. Sem elas, não vamos lá chegar”, avalia.

Apesar dessa necessidade de acções mais abrangentes, Nunes da Silva identifica outra razão de peso para os engarrafamentos em Lisboa. “Assistimos a uma situação dramática de desmantelamento dos serviços técnicos de mobilidade, nos últimos mandatos. Só há duas pessoas que sabem da programação dos semáforos em toda a cidade. Agora, está tudo dependente de um modelo de algoritmos que tomam decisões localizadas”, critica o ex-vereador, lamentando que “se tenha deixado de ter um sistema de gestão centralizada dos fluxos, como no Porto”.

Durante quase quatro décadas, o sistema Gertrude geriu os semáforos da capital, mas, a partir de 2021, foi substituído pelo SIM.Lx – Sistema Inteligente de Mobilidade de Lisboa. “O que isto fez foi criar uma espécie de ‘mini-Gertrude’ em cada cruzamento. Se estiver a conduzir, só por mero acaso apanha os sinais todos verdes numa avenida principal. Sem uma gestão clara dos eixos prioritários, temos a actual situação de caos”, critica.

Mário Alves encontra uma explicação adicional para a actual algazarra viária. “Há estudos que demonstram que os congestionamentos pioram de forma significativa com um pequeno acréscimo no tráfego. Em hora de ponta, basta um aumento de entre 5% e 10% para causar o caos”, observa. E muito desse aumento tem que ver com uma realidade que ambos os especialistas relacionam com a pandemia.

No auge da disseminação da covid-19, muita gente terá passado a andar de automóvel por medo de contágio, assinalaram ao PÚBLICO os dois académicos, no âmbito de uma análise às razões para as dificuldades em trocar o uso do carro pelo transporte público. E esse comportamento manteve-se, assinalam. Tal como o da intensificação das compras online, cuja logística de distribuição põe muitos veículos a circular e, muitas vezes, a parar onde não devem.

Mas o mais notório impacto da economia digital no trânsito tem que ver com um outro fenómeno com um crescimento meteórico nos últimos anos: os TVDE. Segundo uma estimativa feita por Fernando Nunes da Silva, esta modalidade de transporte representará um acréscimo de entre 10% e 15% do trânsito. “É que, ao contrário dos táxis, que estão nas praças, os TVDE estão sempre a circular, e isso contribui para o tráfego,” explica o especialista.

Nos últimos anos, o número destes profissionais disparou. Segundo dados enviados pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) ao PÚBLICO, havia 22.208 motoristas de TVDE em 2019, no país. Em 2022, existiam já 47.867 e, no início de Novembro de 2023, o número dispara para 67.941 destes profissionais.

No entanto, mesmo com milhões de euros investidos em sistemas de transportes públicos, as cidades portuguesas só vão começar a resolver o problema do congestionamento quando decidirem que é tempo de limitar o papel do carro nas suas ruas.

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