Como nos aquecemos, o que comemos, “muito pode ter de mudar para atingir a neutralidade carbónica”

O presidente do IPCC esteve em Portugal para receber o prémio Norte-Sul, atribuído ao Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas — e fala-nos sobre o acordo conseguido na COP28.

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O presidente do IPCC, Jim Skea Nuno Ferreira Santos
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No dia em que a COP28 chegou ao fim — com um acordo que menciona pela primeira vez a redução de combustíveis fósseis, cuja queima é a principal causa das emissões que causam as alterações climáticas – o presidente do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (mais conhecido pela sigla IPCC) diz ao PÚBLICO que, mais do que as palavras, tudo dependerá “do que os países individualmente escolham fazer”. ​

Há ainda muito caminho pela frente. Como referido no último relatório do IPCC, divulgado em Março, há mais financiamento a fluir actualmente para os combustíveis fósseis do que para a adaptação climática e redução de emissões. “Desde que produzimos o nosso último relatório, as emissões não baixaram — de todo. Continuaram a aumentar ligeiramente. E temos mesmo de estar numa trajectória descendente”, afirmou Jim Skea, numa conversa com o PÚBLICO nesta quarta-feira, em Lisboa.

O investigador foi eleito presidente do IPCC em Julho deste ano, seguindo-se ao economista Hoesung Lee. O órgão que agora dirige é considerado a fonte mais fiável de conhecimento científico no que diz respeito às alterações climáticas e os relatórios que fazem servem de base às conversações internacionais sobre o clima – incluindo as cimeiras do clima, como a COP28 que acaba de terminar.

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O presidente do IPCC considera que o mais importante agora na acção climática são as decisões tomadas pelos países

O escocês, que era professor de Energia Sustentável no Imperial College London, já fazia parte do IPCC há três décadas e deverá ocupar este cargo durante os próximos cinco a sete anos. Chegou a Lisboa poucos minutos antes da entrevista. Nesta quinta-feira recebeu o Prémio Norte-Sul do Conselho da Europa de 2022, atribuído na Assembleia da República a duas entidades: o IPCC e a Associação das Cidades Ucranianas (AUC). No caso do IPCC, o prémio é atribuído “pelo seu trabalho na sensibilização relativa à necessidade urgente de agir a nível global contra as emissões de gases com efeito de estufa para mitigar os seus efeitos nas mudanças climáticas que afectam toda a humanidade”.

É inevitável começar esta conversa pela COP28. Acredita que a linguagem importa neste documento final — a transição rumo ao abandono de todos os combustíveis fósseis? Pode realmente trazer mudança?
Não sou um negociador e não estive envolvido nas negociações, mas claramente há ali muita ciência subjacente que deriva do relatório do IPCC. O que importa realmente são os números: o que dissemos no último relatório é que precisamos da eliminação progressiva (phase-out) de combustíveis unabated [sem captura do carbono ou outra forma de “abater” as emissões]. Obviamente que não depende de mim o que significa a transição ou o fim [dos combustíveis fósseis], sei é os números [o relatório do IPCC diz que é preciso cortar 43% das emissões de gases com efeito de estufa até 2030].

Este acordo pode funcionar, mesmo tendo em conta que não existem realmente penalizações para aqueles que não cumpram o Acordo de Paris — e havendo NDC [contribuições determinadas nacionalmente] que não são cumpridas e que não são legalmente vinculativas?
Claramente o Acordo de Paris é um acordo que vem de baixo para cima. Falamos de metas globais, mas depende do que os países individualmente escolham fazer e como isso se acumula no panorama mundial. Temos de esperar e ver se os países individualmente mudam as suas estratégias, mudam as suas políticas, os seus planos de investimento em resultado do acordo a que se chegou [na COP28].

Em relação a esta transição rumo ao abandono dos combustíveis fósseis: acha que vem demasiado tarde?
Cada fracção de grau de aquecimento faz a diferença. Portanto, nesse sentido, nunca é demasiado tarde. Valerá sempre a pena fazer mais.

O acordo é suficiente para limitar a subida da temperatura do planeta a 1,5 graus [em relação aos níveis pré-industriais]?
Aquilo que dizemos claramente é que é preciso uma redução de emissões imediata e rápida se queremos manter-nos na meta dos 1,5 graus. Tudo depende do que os países individualmente escolham fazer. O acordo global por si, se tivesse uma adesão rigorosa por parte de todos, sim, poderia manter-nos na rota do limite de [aumento da temperatura média de] 1,5 graus. Mas requer que todos tomem acção.

Disse na COP28 que estávamos numa corrida contra o tempo [sobretudo na questão das emissões da indústria dos combustíveis fósseis]...
Sim, não sei se foi bem com essa formulação, mas estamos a ficar sem tempo. Desde que produzimos o nosso último relatório, as emissões não baixaram — de modo algum. Continuaram a aumentar ligeiramente. E temos mesmo de estar numa trajectória descendente se queremos manter a meta dos 1,5 graus.

Este é mesmo “o princípio do fim dos combustíveis fósseis”, como disse Simon Stiell [secretário executivo da ONU para as alterações climáticas]?
Os países disseram que iam fazer essa transição rumo ao abandono dos combustíveis fósseis. O assunto principal no que toca ao clima é quão rápida é essa transição para nos afastarmos dos combustíveis fósseis e quão profunda é a redução de emissões. É tudo uma questão de números, não são só palavras.

Quantos dias esteve na COP28?
Estive lá cerca de duas semanas, antes do início até um dia antes do final. Chega a um ponto em que quase já não é preciso estar lá, porque passa a acontecer a um nível altamente político.

Pode comentar como foram as suas conversas com Sultan Al Jaber [ministro dos Emirados Árabes Unidos que está ligado ao sector petrolífero e que presidiu à COP28]?
Nem por isso. Já me encontrei com ele várias vezes, já discutimos a ciência das alterações climáticas, penso que ele a entende perfeitamente.

O acordo da COP28 prevê uma transição que seja “justa e equitativa”. O que é que o IPCC entende por transição justa?
Tem a ver com ser justo para diferentes grupos de pessoas. É justiça a dois níveis: há uma dimensão internacional e também há justiça a nível interno dos países, porque é importante que o fardo (se existir) da acção climática não recaia de forma injusta em algumas pessoas.

É por isso também que o fundo de perdas e danos é tão importante...
Essa é a vertente internacional. Podemos adapta-nos às alterações climáticas, mas há limites para essa adaptação, há riscos residuais a que não podemos adaptar-nos e aquilo que o fundo de perdas e danos faz é dar resposta a esses aspectos.

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Pela primeira vez, uma cimeira do clima das Nações Unidas aprova um acordo que menciona a redução dos combustíveis fósseis.​

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Também se fala muito nas tecnologias para capturar e remover carbono, por exemplo. Considera que é uma solução realista tendo em conta o seu custo elevado?
De um ponto de vista da engenharia, é perfeitamente fazível e já foi feito: já capturaram carbono, já o transportaram, tudo isso já foi feito. O que não foi feito foi acontecer em vários locais, numa escala muito mais alargada em todas estas etapas.

Este foi um ano de recordes climáticos —​ este deve ser o ano mais quente desde que há registos. Estes fenómenos climáticos surpreenderam-no?
Penso que surpreenderam todos os cientistas, na verdade. De tudo o que estava previsto pelo IPCC, esperávamos que o que aconteceu este ano só acontecesse no futuro, daqui a uns anos. Penso que as pessoas ficaram genuinamente surpreendidas e precisamos de ter mais entendimento científico para saber por que razão assistimos a estes extremos deste ano. São bastante distintos do registo histórico, são bastante anormais.

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O cientista escocês foi eleito como líder do IPCC em Julho deste ano

Poderá ser por causa do El Niño? Ou há outra razão?
Há várias coisas: uma é que a actividade humana levou a um aumento gradual das alterações climáticas, temos o início de um episódio de El Niño, e por vezes há coisas que podem acontecer de um ano para o outro que fazem a diferença. Mas mesmo tendo isso tudo em conta, foi realmente excepcional.

O planeta está a dar-nos sinais de aviso?
Sim, sem dúvida. Este ano quebrou muitos recordes, foi mesmo excepcional.

Já trabalhou com vários governos, vários governantes e já fez parte de vários conselhos no Reino Unido. Qual é o maior travão a nível político para a acção climática?
Penso que é o facto de envolver mudanças na forma como se fazem as coisas. Há certos aspectos, como as energias renováveis, em que se fizeram muitos progressos, mas o passo seguinte envolverá mudanças muito mais directas na vida das pessoas. Nos transportes, na forma como aquecemos ou arrefecemos as nossas casas, mesmo na forma como comemos. Muitas destas coisas podem ter de mudar se realmente queremos atingir a neutralidade carbónica (net zero). No caso das energias renováveis, ligamos o interruptor normalmente e a luz aparece e não sabemos de onde vem a electricidade. Mas, no passo seguinte, haverá efeitos muito mais directos na vida das pessoas.

Qual a área mais negligenciada na acção climática?
Temos de pensar na parte mais humana da acção climática e não apenas focarmo-nos na questão da tecnologia, esta foi uma COP muito pesada em termos de tecnologia. A tecnologia é vital, precisamos sem dúvida dela, mas temos de pensar no lado humano.

Até tendo em conta o impacto na saúde que a crise climática também pode ter...
Sim. Uma mensagem forte que temos é que a acção climática pode trazer outros benefícios além de melhorar o clima. A acção climática, a mudança para veículos eléctricos e transportes públicos tem muitos impactos muito positivos na saúde, reduz a poluição do ar.

Quais são os principais objectivos para este seu mandato no IPCC?
Tenho muitas coisas que quero fazer. A principal é que o IPCC se mantenha relevante politicamente. Tem tido um impacto gigante no último ciclo: o relatório dos 1,5 graus que saiu há cinco anos praticamente mudou o debate sobre as alterações climáticas. Temos de seguir isso. E também como é que planeamos as nossas actividades em relação ao segundo balanço global (global stocktake). Os decisores políticos estão a dizer que esta é a década da acção climática e temos de falar mais directamente com os decisores políticos no terreno, não necessariamente aqueles que vão às COP e negoceiam as palavras, mas aqueles que têm de levar as decisões, de agir de forma mais local.

Também tem falado muito no que acontecerá se ultrapassarmos o limite de aquecimento de 1,5 graus. Como é que o IPCC reagirá se tal acontecer?
Se olharmos para os relatórios deste ciclo, eles diziam o que iria acontecer se ultrapassássemos esse limite. Já ultrapassámos essa linha algumas vezes. Estou bem ciente do facto de que, quando acabarmos os nossos relatórios neste ciclo, possivelmente teremos ultrapassado os 1,5 graus de aquecimento. Temos de produzir relatórios que sejam relevantes e se mantenham relevantes dependendo das acções que os governos decidam tomar.

Vai receber este prémio Norte-Sul [nesta quinta-feira]. O que significa para o IPCC e para os cientistas que dele fazem parte?
É um orgulho imenso, sobretudo tendo em conta todas as entidades que já receberam este prémio no passado. O que reconhece é também a diversidade e inclusão que existe no IPCC, temos cerca de 40% de autoras mulheres e temos tido cuidado para ter um equilíbrio maior de países, incluindo de países menos desenvolvidos.