Emigrantes portugueses vão ficar “inactivos” no SNS e pagar os serviços em Portugal
“Trata-se de uma decisão bastante negativa e mais uma incompreensão do Governo em relação às comunidades”, reage presidente do Conselho das Comunidades Portuguesas.
Os portugueses residentes no estrangeiro vão ficar "inactivos" no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e ter de pagar o atendimento a partir de 1 de Janeiro de 2024, de acordo com as novas regras do Registo Nacional de Utentes. Isso significa que, sempre que usarem um serviço do SNS português, terão de pagar o seu custo.
Nelson Magalhães, vice-presidente da USF-AN (Unidade de Saúde Familiar - Associação Nacional), disse à Lusa que a decisão foi transmitida às unidades numa reunião que decorreu a 2 de Outubro, com responsáveis da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) e os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS).
Em causa está a aplicação de um despacho (n.º 1668/2023) que "define as regras de organização e os mecanismos de gestão referentes ao Registo Nacional de Utentes (RNU), assim como as regras de registo do cidadão no SNS e de inscrição nos cuidados de saúde primários".
Fonte da ACSS indicou à Lusa que o despacho prevê que a inscrição numa Unidade de Cuidados de Saúde Primários pressupõe um registo activo no RNU, que "tem como condição obrigatória a residência em Portugal".
Até agora, os portugueses residentes no estrangeiro, com número de utente do SNS português, quando acediam aos seus serviços pagavam as taxas moderadoras, tal como os residentes em Portugal.
A partir de 1 de Janeiro, os portugueses com residência fiscal no estrangeiro terão o seu registo "inactivo", mesmo os frequentadores dos serviços.
Além de deixarem de ter médico de família, no caso de o terem, estes utentes terão de suportar o custo do atendimento: "Sobre o registo inactivo, com excepção das situações de óbito, aplica-se a condição de encargo assumido pelo cidadão", lê-se no despacho.
Ainda que sem indicações superiores precisas quanto ao método, os profissionais dos serviços de saúde primários estão a tentar contactar os utentes nestas circunstâncias, que reagem com apreensão e alguma revolta.
"Acho muito injusto. Embora seja verdade que de momento resida no estrangeiro, continuo a preferir recorrer ao serviço de saúde em Portugal, uma vez que a língua e a familiaridade torna mais fácil o tratamento, especialmente de algumas questões de saúde crónicas e às quais tenho sempre recebido acompanhamento em Portugal com a mesma médica de família que me segue desde criança", disse uma utente actualmente a residir na Holanda, e que já foi informada que será expurgada do SNS. "Continuo a ser portuguesa e sinto que esta política me exclui e me irá dificultar o acesso à saúde".
Para Nelson Magalhães, trata-se de "muita gente que é utilizadora" do SNS e que "não quer cortar o elo com o seu médico de família". "É uma questão de confiança. As pessoas, com os meios tecnológicos, como o e-mail, muitas vezes mantém a ligação com o seu médico", adiantou.
O grande impacto vai ser nos utentes que residem no estrangeiro com médico de família em Portugal, pois vão "perder essa ligação", mas também abrange todos os outros.
Nelson Magalhães sublinhou que estes emigrantes devem ter o Cartão Europeu de Seguro de Doença, o qual lhes permite receber assistência médica durante uma estada temporária num país da União Europeia, na Islândia, Liechtenstein, Noruega ou Suíça. Contudo, o dirigente da USF-AN alertou para o reduzido número de utentes com este cartão, pois até hoje "nunca foi necessário" em Portugal.
A medida, adiantou, deverá abranger centenas de portugueses, uma vez que num universo de 1750 utentes (por médico de família), cerca de 100 estão emigrados. O impacto também se fará sentir no rendimento dos médicos que recebem consoante o número de utentes nas suas listas (modelo B) e que, para manter o mesmo valor, terão de incluir mais utentes e, sobretudo, de pessoas que consomem mais os serviços, o que vai dificultar ainda mais a resposta médica". Outra consequência, frisou, é "a separação das famílias", pois a pessoa que estiver emigrada deixa de ter a mesma resposta que o seu agregado familiar.
Revolta na diáspora
"É extremamente grave que isto esteja a ser implementado sem um debate, sem falar com as pessoas, sem um pré-aviso", disse à Lusa Paulo Costa, fundador do movimento "Também somos portugueses". "Se isto entrar em vigor a 1 de Janeiro, sem ninguém estar informado, vamos ter aí casos muito complicados de pessoas que vêm cá e que contam que tudo funcione como habitualmente".
"As pessoas vão ser apanhadas numa armadilha. Vão aos serviços e depois aparece-lhes uma conta", considera Paulo Costa. Acusa o Governo de estar a avançar com uma medida sem consulta prévia do Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), o que devia acontecer, uma vez que tem repercussões nos portugueses que vivem no estrangeiro.
Contactado pela Lusa, o presidente do CCP disse que "nada foi comunicado" a este órgão consultivo do Governo em matéria de comunidades. "Trata-se de uma decisão bastante negativa e mais uma incompreensão do Governo em relação às comunidades e ao arrepio e descumprimento do que diz a lei do CCP e que se faz sem a manifestação" do conselho, afirmou.
Em comunicado enviado às redacções, o coordenador das comunidades portuguesas do PSD, José Cesário, considerou esta quarta-feira "de uma gravidade extraordinária" as novas regras uma vez que "discriminam portugueses, de acordo com a respectiva residência, considerando os não residentes como portugueses de segunda, colocando-os mesmo numa posição inferior a qualquer estrangeiro residente em Portugal, ainda que ilegal".
José Cesário considera que "o Governo faz tábua rasa de todo o contributo que os portugueses residentes no estrangeiro dão para o desenvolvimento nacional, através das respectivas remessas e do pagamento dos mais variados impostos como o IRS, IVA, IMI, IMT, entre outros". E pede ao executivo "bom senso" para alterar "esta gravíssima decisão, cumprindo a Constituição", devolvendo aos membros das comunidades portuguesas no estrangeiro "a igualdade com que merecem ser tratados relativamente a qualquer outro cidadão nacional".