O início do fim dos combustíveis fósseis, 30 anos depois

Nesta COP28, as negociações sobre o clima puseram finalmente o foco no abandono dos combustíveis fósseis, um dos elefantes na sala nas negociações climáticas. Faltam os outros elefantes.

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Cimeira decorreu no Dubai Reuters/THOMAS MUKOYA
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Agir. Concretizar. "O limite de 1,5ºC tem que ser a nossa estrela guia." Financiamento. Adaptação. "Peço-vos que sejam flexíveis." Ao longo das últimas duas semanas, na cimeira do clima das Nações Unidas, estas foram palavras repetidas até à exaustão por Sultan Ahmed Al Jaber, ministro dos Emirados Árabes Unidos que presidiu à COP28.

O mantra não terá sido em vão: depois de uma maratona de negociações para melhorar a versão preliminar publicada na segunda-feira pela equipa de Al Jaber, o texto do balanço global, um dos documentos centrais desta COP28, foi aprovado no plenário da COP28 na quarta-feira de manhã com um consenso que muitos consideravam improvável. A cimeira do clima terminava, assim, com “apenas” 24 horas de atraso, com o patrão do petróleo e das renováveis dos Emirados Árabes Unidos a declarar, pela primeira vez na história das COPs, o que muitos chamam de “início do fim dos combustíveis fósseis”. (Já iremos aos que discordam.)

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Pela primeira vez, uma cimeira do clima das Nações Unidas aprova um acordo que menciona a redução dos combustíveis fósseis.​

Reuters,Azul

O acordo aprovado para o balanço global (global stocktake) - o primeiro que é feito desde o Acordo de Paris - “reconhece a necessidade de reduções profundas, rápidas e sustentadas das emissões de gases com efeito de estufa”.

Onde no texto preliminar se apelava aos países a “reduzir tanto o consumo como a produção de combustíveis fósseis”, indicando vagamente a meta de 2050, pede-se agora que as partes contribuam para uma "transição para o abandono dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos, de uma forma justa, ordenada e equitativa, acelerando a acção nesta década crítica, de modo a atingir emissões líquidas nulas até 2050, em conformidade com a ciência".

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Momento histórico

A aprovação por consenso de um acordo difícil foi o final perfeito para Al Jaber, numa cimeira que tinha começado com um muito negociado acordo sobre o fundo de perdas e danos, destinado a ajudar países a recuperar de desastres climáticos. Ao declarar o balanço global como aprovado, Sultan Al Jaber considerou-o “um pacote histórico” de medidas que garantem “um plano robusto” para manter o aquecimento global no limite de 1,5 graus.

O enviado especial dos EUA para o clima, John Kerry, também definiu este momento como “histórico”. “Estou impressionado com o espírito de cooperação que uniu todos”, afirmou Kerry.

“Quero dizer que a saída dos combustíveis fósseis é inevitável, gostem ou não. Esperemos que não chegue tarde demais”, sublinhou o secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres - uma das vozes mais sonantes contra a indústria dos combustíveis fósseis -, acrescentando que "o mundo não pode permitir-se atrasos, indecisões ou meias medidas”.

Do lado da União Europeia, que faz parte da aliança de Estados que defende a saída dos combustíveis fósseis, as reacções também foram de entusiasmo. “O mundo acaba de adoptar uma decisão histórica na COP28 para pôr em marcha uma transição irreversível e acelerada que nos afaste dos combustíveis fósseis”, escreveu o comissário europeu para a acção climática, o neerlandês Wopke Hoekstra. “Feito!!! Acordo mostra que Paris está vivo e podemos ir mais além!”, celebrou a ministra espanhola Teresa Ribera, que conduziu as negociações por parte do Conselho da União Europeia.

No balanço global, que vai determinar os planos de acção dos países para o próximo ciclo de cinco anos, é também assumido um conjunto de metas pelas quais a União Europeia se bateu, como a duplicação da eficiência energética e a triplicação das energias renováveis.

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Positivo, mas…

Como em tantas decisões por consenso, nem todas as partes saíram inteiramente satisfeitas. Ao longo da COP28, foram várias as cobranças feitas aos países mais desenvolvidos, seja pelas dificuldades que colocam ao financiamento e compromissos insuficientes no apoio à adaptação, seja por continuarem a ser os grandes responsáveis pelas emissões de gases com efeito de estufa que exacerbam as alterações climáticas. E o texto do balanço global continua a não resolver estas questões estruturais, que são questionadas desde o início das COPs.

O chefe da delegação das Ilhas Marshall, uma das nações insulares que estão em risco devido à subida do nível médio das águas do mar, lamentou a falta de ambição do documento. “Vim da minha casa nas ilhas para trabalhar convosco na resolução do maior desafio da nossa geração. Vim aqui para construirmos juntos uma canoa para o meu país. Em vez disso, construímos uma canoa com um casco fraco e com fugas, cheio de buracos”, afirmou John Silk, que já na segunda-feira tinha deixado uma mensagem clara: “Viemos para lutar pelo objectivo de 1,5 graus e a única forma de o conseguir: abandonar os combustíveis fósseis”.

A ministra do Meio Ambiente do Brasil, Marina da Silva, considerou que o novo acordo aponta um caminho para o fim da utilização dos combustíveis fósseis, mas sublinhou que os países desenvolvidos têm um papel especial nesse percurso. “A posição do Brasil é baseada na ideia de que os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento devem estar todos comprometidos em ter uma responsabilidade comum”, afirmou. “Porém, os países desenvolvidos devem assumir essa liderança.”

O Brasil começa já a preparar-se para acolher a COP30, que acontecerá em Belém daqui a dois anos. Apesar de o país se ter apresentado no Dubai como um defensor da natureza, os sinais têm sido contraditórios: na semana passada, foi anunciado que o Brasil iria integrar a Organização dos Países Exportadores de Petróleo e aliados (OPEP+); na quarta-feira, foram postos no mercado 602 blocos para exploração de petróleo e gás natural em vários locais do Brasil, naquilo que tem sido apelidado de o “leilão do fim do mundo”.

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Carta branca continua?

Na interpretação de Portugal e da União Europeia, esta linguagem de transição destes combustíveis fósseis “vale tanto como a linguagem do ‘phasing out’”, a eliminação que acabou por ficar de fora do texto. “Sabemos que diplomaticamente às vezes bloqueamos relativamente a determinadas expressões, mas todos assumimos na União Europeia que ‘transitioning away’ é sair da era dos combustíveis fósseis”, afirmou o ministro do Ambiente e da Acção Climática, Duarte Cordeiro. Na prática, a UE assume que a expressão significa a saída dos combustíveis fósseis, pelo menos “no que diz respeito a tudo o que conseguimos substituir”.

Este acordo pode ser o início do fim dos combustíveis fósseis, mas para alguns países esse relógio ainda não começou a contar. O ministro da Energia da Arábia Saudita, o príncipe Abdulaziz bin Salman, já veio dizer que a resolução não iria afectar as exportações de hidrocarbonetos do país, o maior exportador de petróleo do mundo. “O texto dá alternativas. Mas penso que estes textos não afectam as nossas exportações, não afectam a nossa capacidade de vender”, afirmou bin Salman à televisão estatal Al Arabiya.

Para Mary Robinson, antiga presidente da Irlanda e ex-alta-comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, “o acordo da COP28, embora sinalize a necessidade de pôr fim à era dos combustíveis fósseis, fica aquém ao não se comprometer com a eliminação total dos combustíveis fósseis”.

A antiga Enviada Especial da ONU para o Clima afirma ainda que, “na COP28, a transparência, a equidade e a justiça climática foram minadas por linguagem enganosa, soluções falsas e jogos”. “O acordo final carece das soluções financeiras críticas para desbloquear os biliões de dólares necessários para qualquer transição justa. Sem fornecer os meios necessários para a implementação, condenamos ao fracasso os países que estão na linha da frente da emergência climática”, acrescenta Mary Robinson.

“Temos de nos perguntar a nós mesmos quanto mais tempo é que o mundo vai ter de esperar antes que todas as nações convoquem a vontade política para ultrapassar estes interesses especiais estreitos e agirem em nome do futuro da humanidade”, afirmou ainda Al Gore, antigo vice-presidente dos EUA, sublinhando o papel que os povos podem ter ao pressionar os seus governos. “Cabe-nos a todos responsabilizar os nossos líderes pelas suas promessas de fazer a transição e abandonar de uma vez por todas os combustíveis fósseis.”

O PÚBLICO viajou a convite da Fundação Oceano Azul