Acordo da COP deixa espaço para várias saídas: sucesso vai depender da “receita” de cada país

Embora o acordo da COP28 traga boas notícias, há margem para se fazerem escolhas menos boas para o clima, argumenta o ambientalista Francisco Ferreira: a “sociedade civil” vai ser muito importante.

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A divisa da COP28, no Dubai: "Uni-vos. Actuem. Entreguem." MARTIN DIVISEK/EPA
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O parágrafo 29 do acordo final da COP28, a cimeira do clima que terminou nesta quarta-feira no Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, é exemplificativo dos buracos que o documento deixa para o futuro. Embora seja a primeira vez que um acordo produzido numa destas cimeiras afirme a necessidade de abandonar os combustíveis fósseis, há frases que podem ser aproveitadas de uma forma que atrasa o fim desse uso e do combate às alterações climáticas.

No caso do parágrafo 29, afirma-se que o documento “reconhece que os combustíveis de transição podem ter um papel em facilitar a transição energética enquanto garantem a segurança energética”. O que são esses combustíveis de transição? Para Francisco Ferreira, líder da associação ambientalista Zero, alguns países podem incluir o gás natural na lista de combustível de transição, embora este seja de origem fóssil e emita gases que provocam o efeito de estufa, que estão na base das alterações climáticas.

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“Enquanto para nós a transição é o fim das energias fósseis, haverá outros que dizem que está lá escrito indirectamente ‘gás natural’”, diz ao PÚBLICO o ambientalista, por telefone, a partir do Dubai. “Ganha-se bastante porque pela primeira vez está patente os combustíveis fósseis, mas há uma margem de argumentos que se pode usar, onde há opções que não são as melhores.”

Além da possibilidade do uso do gás natural, o ambientalista aponta para opções como a energia nuclear e as tecnologias de remoção e sequestro de dióxido de carbono, que no novo acordo fazem parte do conjunto de possibilidades energéticas para se atingir a neutralidade carbónica, mas que podem ser problemáticas.

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Para Francisco Ferreira, estas duas opções são dispendiosas e custam energia. “As centrais nucleares são caríssimas e demoram imenso tempo até começarem a funcionar”, refere. Já a tecnologia de remoção e sequestro de carbono ainda é “imatura”, aponta. “Para reduzir as emissões, não posso estar a confiar em algo que ainda não deu uma resposta válida”, argumenta o ambientalista. Pelo contrário, os custos de aproveitamento da energia eólica e da energia eléctrica reduziram-se muito ao longo dos anos e hoje estas energias compensam.

“Em vez de trabalhar a montante e na origem do problema, que são os combustíveis fósseis, o acordo está a deixar margem para se apostar a jusante, em tecnologias que diminuem o impacto dos combustíveis fósseis”, explica Francisco Ferreira, recorrendo a “soluções que não devia estar a promover”.

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Ainda assim, o ambientalista defende que o acordo obtido no Dubai, apesar de “não ser histórico como o Protocolo de Quioto e o Acordo de Paris”, é importante. “Acho que vale muito. Vai ser, em muitos casos, utilizado de forma diferente pelos diferentes países. Se não houvesse esta decisão, não haveria a cobertura daquilo que foi decidido à escala mundial”, sublinha Francisco Ferreira. Ou seja, é possível à sociedade civil de cada país exigir medidas aos seus governantes levando para cima da mesa o acordo que saiu do Dubai.

Mas isso não garante que as melhores intenções sejam levadas adiante. Uma das reacções positivas ao acordo veio da Arábia Saudita, o maior produtor de petróleo. “O texto dá alternativas. Mas penso que estes textos não afectam as nossas exportações, não afectam a nossa capacidade de vender”, disse nesta quarta-feira o príncipe Abdulaziz bin Salman, ministro da Energia, à televisão Al Arabiya, detida pelo Estado.

Já os países em desenvolvimento, que estão numa situação oposta à da Arábia Saudita, têm outros problemas: por um lado, não têm os meios tecnológicos para fazerem sozinhos a transição energética e adaptarem-se à nova realidade das alterações climáticas; por outro lado, muitos deles estão numa fase de crescimento populacional, com um gasto de energia per capita muito abaixo da realidade ocidental.

Para estes países, o caminho da transição energética terá que ser outro. “Um país em África se calhar não pode ser obrigado à transição que um país na Europa tem que fazer”, alega Francisco Ferreira. Nestes casos, a ajuda através do financiamento será fundamental. O acordo insta, mais uma vez, “os países desenvolvidos a cumprirem na totalidade, com urgência, o objectivo de 100 mil milhões de dólares por ano até 2025 para acções de mitigação”, lê-se no documento. Algo que já deveria ter começado a ser cumprido em 2020 e não foi.

Para Saber Hossain Chowdhury, enviado climático do Bangladesh ao Dubai, “a adaptação é realmente uma questão de vida ou de morte”, disse, citado pela Reuters, reagindo ao acordo. “Não podemos comprometer a adaptação. Não podemos comprometer as nossas vidas e os nossos meios de subsistência”, sublinhou. Por isso, o financiamento deverá ser “orientado para a disponibilização dos recursos de que necessitamos”, acrescentou. “É absolutamente fundamental.”

Mas não é certo que aconteça. “Entre o texto e a sua concretização, há uma diferença muito grande”, afirma Francisco Ferreira. Como é que é possível ultrapassar esse hiato? “Vai depender de cada país. É por isso que a sociedade civil é tão importante, e a ciência. É dado um caminho, mas a receita que cada país vai usar pode ser mais sustentável e mais verdadeira do que a de outros países.”