“Inaceitável.” Esta a foi a palavra-chave de muitas das reacções à proposta apresentada nesta segunda-feira pela presidência da cimeira do clima das Nações Unidas que está a decorrer no Dubai, a COP28, para um dos textos mais esperados do encontro, o balanço global (global stocktake) da aplicação do Acordo de Paris. O principal problema é que não fala de forma explícita na eliminação dos combustíveis fósseis.
“A COP28 está à beira do fracasso total”, afirmou no Twitter Al Gore, ex-vice-Presidente dos Estados Unidos e activista contra as alterações climáticas. “Este é um texto subserviente à Organização dos Países Produtores de Petróleo, como se a OPEP o tivesse ditado palavra a palavra”, declarou.
Ter um compromisso com o fim dos combustíveis fósseis era o grande objectivo desta conferência. Mas foi esbatido. “O texto usa uma linguagem muito vaga, não dá o sinal claro que é necessário”, comentou Jamal Strouji, analista especializado em alterações climáticas do think tank norte-americano World Resources Institute, numa conferência de imprensa online conjunta com outra instituição, a E3G, momentos depois de ter sido divulgado o documento, em que o Azul participou.
O principal problema reside na alínea e) do artigo 39 do documento que está a ser negociado na COP28, que fala em “reduzir tanto o consumo como a produção de combustíveis fósseis, de forma justa, ordenada e equitativa, de modo a atingir o valor líquido zero até 2050, antes ou por volta dessa data, em conformidade com os dados científicos”.
Não só a meta temporal é fluida, como é vago o que está em causa. “Zero líquido de quê?”, interroga Strouji. Outro aspecto diz respeito à eliminação dos subsídios para os combustíveis fósseis.
Neste artigo 39, que diz que os países reconhecem “a necessidade de reduções profundas, rápidas e sustentadas das emissões de GEE (gases com efeito de estufa)” e se apela a que tomem diversas medidas, listadas em várias alíneas, há vários pontos problemáticos. Por exemplo, o que fala “na eliminação progressiva, o mais rapidamente possível, dos subsídios ineficientes aos combustíveis fósseis que incentivam o consumo supérfluo e não combatem a pobreza energética ou as transições justas”.
“É um passo atrás em relação à declaração da COP26, em Glasgow, em que se falava na necessidade da eliminação de todos os subsídios. Agora são só os ineficientes”, salientou ainda Jamal Strouji.
Palavras sem acções
“Este é um texto que é uma completa decepção. Cada país pode escolher a sua própria aventura. Não apresenta um mapa para a neutralidade climática, deixa que cada um escolha o caminho que quiser, e o que propõe é substancialmente mais fraco do que uma saída dos combustíveis fósseis”, comentou David Waskow, director da iniciativa para o clima do World Resources Institute.
Também o discurso relativamente às necessidades financeiras para a adaptação às alterações climáticas é insuficiente, disse Alex Scot, do think tank especializado em temas de alterações climáticas E3G. “Reconhece-se que os custos e necessidades de adaptação são agora 10 a 18 vezes maiores do que os fluxos financeiros públicos actuais, mas não se estabelece nenhum caminho para resolver esse problema”, salienta.
“Num documento de 11 mil palavras, o termo ‘combustíveis fósseis’ é mencionado três vezes. As palavras ‘petróleo’ ou ‘gás’ não são mencionadas nenhuma vez. Menciona-se uma ‘redução progressiva do carvão’ – embora sem qualquer escala temporal”, salienta a associação ambientalista portuguesa Zero.
“Praticamente nenhum dos verbos neste rascunho da avaliação global da aplicação do Acordo de Paris tem a ver com acções. É tudo ‘nota’, ‘reconhece’, etc, com alguns fracos ‘convida’ e uns ligeiramente mais enfáticos ‘apela’”, comentou Simon Evans, vice-director do site Carbon Brief.
A União Europeia já veio dizer, através da voz de Teresa Ribera, a ministra do Ambiente espanhola que está no Dubai a negociar em nome dos países da União Europeia, e o comissário europeu Wopke Hoekstra. “Decepcionante e com partes inaceitáveis”, declaram.
Os Estados Unidos fizeram também saber que não estão satisfeitos com este documento apresentado pelo presidente da COP28, Sultan Al Jaber, ministro da Indústria e administrador da petrolífera estatal dos Emirados Árabes Unidos (ADNOC). “A secção relativa à mitigação [redução das emissões de gases com efeito de estufa] precisa de ser substancialmente reforçada, e a secção sobre finanças contém imprecisões que têm de ser resolvidas”, disse um porta-voz do Departamento de Estado, citado pela agência Reuters.
A declaração mais forte, como seria de esperar foi a da Aliança de Pequenos Estados-ilha — os que correm o risco de desaparecer primeiro por causa das alterações climáticas, quer por causa da subida do nível dos mares, quer por serem mais susceptíveis a consequências da mudança do clima como grandes furacões.
“A República das Ilhas Marshall não veio aqui para assinar a nossa pena de morte. Viemos para lutar pelo objecto [de um aquecimento global que não ultrapasse] 1,5 graus e a única forma de o conseguir: abandonar os combustíveis fósseis”, afirmou John Silk, o chefe da delegação deste país da Oceânia, composto por 29 atóis e 1225 ilhas, com 870 sistemas de recifes e 160 espécies de coral, segundo a Wikipédia. É uma das quatro nações de atol no mundo.
“O que vimos hoje é inaceitável. Não vamos marchar silenciosamente para as nossas sepulturas nas águas”, assegurou John Silk.
Pró-petróleo?
Para muitos, o documento apresentado pela presidência da COP28 parece tornar reais os temores de que a indústria petrolífera teria um grande peso, numa cimeira que se realiza num petroestado como os Emirados Árabes Unidas. A indústria petrolífera ganha com esta proposta?
Responde Tom Evans, do think tank especializado em questões climáticas E3G: “O texto, tal como está, não tem uma linguagem suficientemente forte para fazer a indústria petrolífera avançar. Essa linguagem ligeira será favorável à indústria dos combustíveis fósseis."
“Mas isto não é aceitável”, avisou Tom Evans. “Os países que estão a fazer pressão para que haja ambição têm de se unir e tentar isolar e afastar quem está a travar este texto”, sugeriu. A Arábia Saudita tem sido vista como um dos principais obstáculos a uma linguagem forte relativamente aos combustíveis fósseis.
O G77, no entanto, que junta a China e 135 países em desenvolvimento, não reagiu em bloco. Meena Raman, especialista em políticas climáticas da organização não-governamental Rede do Terceiro Mundo, disse ao Guardian sentir-se aliviada por ver que o documento não é completamente enviesado a favor dos países mais ricos. “Vê-se que o presidente da COP28 está a tentar equilibrar algumas coisas que os países do G77 queriam com outras que os países desenvolvidos pretendiam."
Avinash Persaud, conselheiro da primeira-ministra dos Barbados, Mia Mottley, que tem sido importante na defesa da reforma do sistema de financeiamento climática para os países em desenvolvimento, não alinha nas críticas negativas. “Não é um mau texto. Alguns ficarão desapontados com a falta de clareza quanto ao abandono dos combustíveis fósseis, mas o que o texto reconhece é a realidade de que os não podemos deixar sem termos um investimento maciço em energias renováveis, o que exige grandes fluxos financeiros”, disse ao Guardian.
A falta de clareza, no entanto, é difícil de aceitar. “A linguagem não vinculativa, vaga e enganadora é decepcionante, no mínimo, e fica aquém da resposta urgente que a crise climática nos exige. Deixa a porta aberta a distracções perigosas e falsas tecnologias como a captura e armazenagem de carbono e vai fazer-nos ultrapassar o limite de aquecimento global de 1,5 graus”, comentou Cansin Leylim, da organização 350.org.
Certo é que a presidência da COP28 ainda tem muito que fazer — embora Sultan Al Jaber tenha anunciado que queria fazer da COP28 a primeira conferência do clima a terminar no prazo previsto (terça-feira). Isso é pouco provável. “Tem de ouvir as partes e reformular o texto”, disse Jamal Strouji. “A presidência mostrou-se muito ambiciosa, mas tem de trazer para a mesa algo mais do que aquilo que apresentou”, concluiu Alex Scot.