Saudades das laranjas do Algarve? Alterações climáticas contribuíram para o sumiço

Falta de chuva, temperaturas elevadas no Inverno e indisponibilidade e água contribuem para afectar a produção de fruta no Sul do país. As primeiras laranjas do Inverno estão a chegar.

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As primeiras laranjas com o selo Citrinos do Algarve IGP deste Outono-Inverno chegarão em breve ao mercado Carlos Lopes
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Entra no café e pede um sumo de laranja natural. Mas não, não há laranjas. E durante muitos dias não houve laranjas. Pelo menos em alguns supermercados, esta fruta desapareceu igualmente das prateleiras durante um certo tempo. Quando apareceu de novo, vinha da África do Sul. Laranjas do Algarve, nem vê-las, desde o fim de Agosto… Porquê este sumiço? As alterações climáticas ajudam a explicá-lo.

O problema é que os pomares do Algarve produziram menos laranjas de Verão do que o normal. “As campanhas dos citrinos são entre 1 de Outubro e 30 de Setembro do ano seguinte. E normalmente conseguimos ter laranja no Verão das variedades Valencia Late e Dom João”, explicou ao Azul Marta Afonso, técnica da associação empresarial Algar Orange – Associação de Operadores de Citrinos do Algarve. Mas estas variedades foram as mais afectadas pela redução de produção.

“Acabou por terminar mais cedo a campanha destas laranjas, do grupo das laranjas comuns. Pode-se dizer que terminou no final de Julho. Em Agosto ainda havia alguma laranja no mercado, mas já não era uma quantidade significativa, que se pudesse dizer que havia no mercado citrinos do Algarve”, relata Marta Afonso.

Normalmente, há sempre citrinos portugueses no mercado – sendo que o Algarve representa mais de 70% da produção nacional, segundo a Algar Orange – porque os produtores conseguem colar as variedades de Verão com as primeiras laranjas-de-umbigo, Newhall e Navelina, que surgem no Outono. Mas este ano houve um hiato significativo, ocupado pelas laranjas importadas, da África do Sul.

Ano farto, ano parco

Quais são os motivos de ter sido fraca a colheita das laranjas de Verão? Podemos relacionar isto com as alterações climáticas? As laranjas estão na linha da frente dos riscos do aquecimento global, por causa da seca que ronda o Alentejo e o Algarve?

“Tem a ver com factores climáticos, mas não necessariamente com a seca. Os factores climáticos são complexos, não se pode dizer que haja um factor determinante, que se diga assim, pumba! Há todo um conjunto”, começa por dizer Amílcar Duarte, director da licenciatura em Agronomia na Universidade do Algarve e especialista em fruticultura, que tem coordenado e participado em diversos projectos de investigação relacionados com a produção de citrinos.

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Antes de mais, o ano anterior foi de alta produção, e a cultura dos citrinos caracteriza-se por uma alternância – “se há muita produção num ano, o seguinte é habitualmente de baixa produção”, explica Amílcar Duarte. Isto acontece em função de um desequilíbrio entre a fase vegetativa e a reprodutiva da planta.

A um ano farto, segue-se um ano parco. Mas este efeito foi muito acentuado este ano. “Não é muito comum haver campanhas com uma quebra de produção tão grande, mas pode acontecer. Assim como tivemos uma campanha anterior que foi excepcional em produção, também pode acontecer ser excepcional ao contrário”, disse, por seu lado, Marta Afonso.

Este ano houve uma descida de produção de laranjas em toda a bacia do Mediterrâneo, também por causa de uma doença que é o HLB [Huanglongbing, causada por bactérias do género Candidatus, para a qual não há cura], adianta Amílcar Duarte. “Em Portugal, essa doença ainda não está [presente] e esperemos que não esteja. Tivemos dois projectos sobre essa doença, um deles para a sua prevenção”, diz.

Mais maduras

ANas últimas semanas, já se tem conseguido comprar algumas laranjas cuja origem é o Algarve. Mas ainda não são laranjas produzidas em conformidade com as regras da denominação Citrinos do Algarve IGP (Indicação Geográfica Protegida). Só quando a laranja atinge uma determinada quantidade de açúcares e índice de maturação definido é que podes er colhida e chegar ao mercado com o logotipo da IGP, atribuído pela União Europeia. “Neste momento, estamos a chegar ao ponto, pois a campanha da laranja Newhall e Navelina abre na próxima segunda-feira, dia 4 de Dezembro”, avisa Marta Afonso.

“Até nem deve ser usado o nome Algarve para essas laranjas, mas antes, por exemplo, o nome Faro, Tavira, Silves, como origem, porque o nome Algarve está protegido para os citrinos”, adianta.

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As laranjas do Algarve são deixadas a amadurecer na árvore, por isso chegam ao mercado mais doces Miguel Manso

Esta característica das laranjas portuguesas, de serem mantidas na árvore até estarem bem maduras, ajuda a explicar por que é que as portuguesas nos sabem melhor do que as importadas. “É uma fruta que já está com uma acidez muito baixa, com açúcares muito altos e, portanto, é uma fruta muito doce”, conta Amílcar Duarte.

É possível que as laranjas importadas sejam de variedades menos saborosas, mas a verdade é que a fruta para exportação, que tem de percorrer longas distâncias, costuma ser colhida sem estar tão madura. “Outros países, mesmo a Espanha, ou a África do Sul, colhem a fruta mais cedo, e lançam-na no mercado com maior acidez, e menos açúcares. Isso faz com que a fruta tenha um sabor menos agradável. É menos doce”, explica o investigador algarvio.

A relação entre as alterações climáticas e a cultura da laranja não é, então, directa, como explicou Amílcar Duarte. Mas o aquecimento global e a resposta que a adaptação (ou falta dela) aos seus efeitos pesará sobre o futuro deste fruto, que em vários países do mundo tem um nome que se confunde com Portugal (portokal na Turquia, portokáli na Grécia ou portocáliu na Roménia, em árabe bortugal ou burtuqálum, segundo a Algar Orange).

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Arranjar mais água

Mais do que a seca, o factor determinante é a disponibilidade de água, que tem a ver com o enchimento das barragens, por exemplo, ou o acesso a fontes alternativas de água. A partir da segunda metade deste século, o Algarve e o Alentejo terão uma redução de 50% da água disponível, segundo um estudo de Rodrigo Proença de Oliveira, do Instituto Superior Técnico para a Agência Portuguesa do Ambiente. Nos últimos 20 anos, a disponibilidade de água em Portugal reduziu-se em 20%. A falta de precipitação é algo que veio para ficar.

Têm sido feitas melhorias na rega na cultura dos citrinos, optado por tecnologias que gastam menos água, ou que a conservam melhor, salienta Marta Afonso. “Por exemplo, se regarmos à noite, não há tanta evaporação da água. Se usarmos sondas para saber a humidade que existe debaixo da terra, na zona das raízes, também conseguimos usar só as quantidades de água necessárias para regar. A própria rega localizada, gota a gota, é muito superior em termos de eficiência a outros tipos de rega e é a que é mais utilizada neste momento nos citrinos”, exemplifica.

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“A ideia é sempre perder o mínimo de água possível e tornar a sua utilização mais eficiente. O sector dos citrinos tem apostado muito nisso, porque também não é do interesse dos agricultores gastarem recursos que são escassos”, conclui a técnica da Algar Orange. A falta de água pode ter efeitos como reduzir o calibre dos frutos — o que é esperado para as laranjas deste Inverno, por causa das restrições que houve à regra por causa da seca.

Está em curso uma corrida para procurar novas fontes de água no Algarve, o que inclui o projecto de construção de uma dessalinizadora. Enquanto isso não acontece, há outras medidas que se podem tomar: “Se calhar, reutilizar água das ETAR tratada, construir barragens ou talvez a canalização de águas de outras zonas para o Algarve”, enumera Marta Afonso. Estas ideias vão sendo faladas, porque o tema está na ordem do dia. “Claro que não é de um dia para o outro, mas este problema tem que se ir resolvendo, porque as alterações climáticas estão aí e temos de actuar antes de chegar a uma situação extrema”, salienta.

Barragens à espera de chuva

O Algarve tem sede. “Se não resolvemos o problema da falta de água, podemos ter que vir a abandonar área de regadio. E se abandonarmos área de regadio, aí vamos ter um problema mais grave do que haver uma diminuiçãozinha da produção”, avisa Amílcar Duarte. “Aí não é só um problema de produção e disponibilidade de água e pode vir a ser um problema social.”

Em risco pode ficar toda a horticultura, toda a agricultura de regadio, afirma Amílcar Duarte. “Os citrinos são a cultura mais importante, ocupam à volta de 15 mil hectares. Mas temos à volta de 3000 hectares de abacateiros que estão com o mesmo problema, e cerca de 500 hectares de dióspiros”, salienta o investigador.

Se este Inverno for seco, as coisas podem já ficar complicadas. “As reservas das barragens do Algarve, aquelas que são utilizadas para a rega de citrinos, estão na ordem dos 16% a 17% de enchimento”, sublinha o professor da Universidade do Algarve.

O complexo Arade-Funcho, duas barragens que ficam ligadas uma à outra, estão com problemas de enchimento. E o complexo Beliche-Odeleite, outras duas barragens ligadas, têm igualmente problemas. “Se não chover este ano, no próximo ano a rega vai ter que ser limitada, se não se resolver o problema, com alguma entrada de água do Guadiana… Há várias soluções que se avançaram... Mas em princípio isso não se consegue pôr em funcionamento para o Verão”, nota Amílcar Duarte. Sonha-se com a construção de novas barragens.

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As laranjas do Inverno podem ser de calibre mais pequeno Nuno Ferreira Santos

As chuvas que caíram neste Outono ajudaram um pouco, mas não chegam. “Deram alguma coisa, mas não é significativa. Aqui terá chovido à volta de 130-150 milímetros (mm). A precipitação média do Algarve seria à volta de 400 mm anualmente”, contabiliza Amílcar Duarte. “Portanto já choveu para aí uma quarta parte do valor anual. Portanto, se houver mais três episódios destes, se calhar a situação compõe-se”, avalia.

“Não sabemos se vem aí essa precipitação ou não. Mas só o céu é que nos salva”, diz Amílcar Duarte, irónico.