Um projecto no Alentejo procura novas formas de viver no planeta

Há um projecto de antropologia em Odemira que quer olhar para uma região atravessada pela tecnologia, pela seca e por novas tendências comunitárias. Resta saber se haverá dinheiro para acontecer.

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Albufeira de Santa Clara está a apenas a 31% da sua capacidade máxima Rui Gaudêncio
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A vista privilegiada da Pousada de Santa Clara permite apreciar a orografia acidentada do interior do concelho de Odemira e a Barragem de Santa Clara, no Alentejo. “Já vi esta albufeira encher-se em pouco tempo”, diz Pedro Prista, antropólogo que conhece bem a região e levou o PÚBLICO até ao lugar. A partir do cimo do monte, é possível observar os grandes braços da albufeira, que acumula a água do rio Mira e dos seus afluentes desde 1969, quando a barragem foi inaugurada, ainda no Estado Novo.

Mas essa não é a realidade deste Novembro. Acima da linha de água há metros de encosta completamente despidos, que denunciam a secura do concelho alentejano e falam de uma crise existencial. “Nunca vi esta albufeira tão baixa como agora”, admite o investigador, que viveu durante mais de três décadas em Odemira, é investigador auxiliar do Observa – Observatório de Ambiente, Território e Sociedade, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e professor reformado do Iscte – Instituto Universitário de Lisboa.

Pedro Prista é líder do projecto Águas Gémeas, que pretende partir da antropologia para analisar a realidade social e tecnológica daquela região no contexto do Antropoceno – a nova época geológica da Terra, dominada pela actividade humana e os seus impactos no planeta, proposta por muitos cientistas. Essa é a principal razão da visita à barragem.

O projecto, um acordo entre a Câmara de Odemira e o Observa, quer compreender como se chegou a um poder tecnológico tão grande e, ao mesmo tempo, o seu uso deixou as populações humanas tão vulneráveis, como demonstra a seca e a falta de água da região. Ao mesmo tempo, há um desejo de estudar e reflectir sobre a resistência da comunidade do interior daquele concelho despovoado, feita de indígenas e estrangeiros à região (nacionais e internacionais), que se vão articulando para responder às exigências de um mundo em mudança, onde se mistura a educação, a arte, o activismo e o sentido de comunidade.

O Águas Gémeas já teve um arranque oficial num colóquio no final de Setembro, mas ainda não avançou para a investigação no terreno por causa de um problema burocrático que pôs em causa o seu financiamento e o próprio projecto. Já lá vamos. Mas Pedro Prista não desiste do potencial que encontrou naquele território.

“Estes lugares podem ajudar-nos a imaginar, a inventar, a descobrir maneiras de poder viver no planeta de uma forma que não seja nem extractivista, nem predatória, nem indutora de desigualdades, nem de subordinação dos outros”, argumenta o antropólogo. “Viver de uma maneira que seja organizada na base de um valor de equilíbrio, de boa-fé e do conhecimento.”

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Pedro Prista, antropólogo responsável pelo projecto Águas Gémeas Rui Gaudêncio

Paisagem bravia ou tecnológica?

Mas porquê usar o interior daquele concelho alentejano, afastado dos grandes centros de Portugal continental, como paradigma de um dos maiores problemas com que a espécie humana se vê confrontada? “Aqui temos um lugar que, na sua história, tem sucessivas inscrições do que é a acção técnica da mão humana e das suas ferramentas sofisticadas, na intervenção num território”, respondeu Pedro Prista, numa conversa com o PÚBLICO na aldeia de Santa Clara-a-Velha, antes da visita à barragem.

Naquela região, há uma sobreposição de infra-estruturas e de usos de território que contam parte da evolução tecnológica dos últimos séculos. Por Santa Clara-a-Velha passava uma das principais estradas de ligação de Lisboa para o Algarve. Em 1889, a porção da linha ferroviária do Sul entre Amoreiras e Faro passou a funcionar, inaugurando-se a estação hoje chamada Santa Clara-Sabóia, onde param comboios Intercidades e Alfa. Mais tarde, foi instalada uma das principais linhas de alta tensão.

Em 1969, chegou a albufeira, que alterou por completo a capacidade do uso de água no concelho de Odemira, que é o que tem a maior área do país, mas que já se encontrava, naquela altura, num processo de despovoamento. “A chegada desta obra foi vista pela população como uma bênção”, recordou o investigador. Por outro lado, foram plantadas grandes extensões de eucaliptal numa região que tradicionalmente era de montado.

Por isso, a ideia associada àquela região de ser um território longínquo e selvagem, que tanto seduziu gerações de europeus no último meio século, como gentes das grandes urbes portuguesas, é um erro de leitura, atirou Pedro Prista. “Só para um lisboeta é que um eucaliptal é natureza bravia...”, disse. “Desde o turismo rural até aos alternativos alemães, vem tudo para aqui por causa do ermo. Mas chegam aqui e é só uma ideia de olhar. Se olhamos com mais pormenor, vemos uma technoscape [uma fusão em inglês das palavras tecnologia e paisagem, cunhada pelo antropólogo norte-americano Arjun Appadurai], um lugar de inscrição do poder e do poder tecnológico. É esta a ligação com o Antropoceno”, resumiu.

É essa tecnologia que está na raiz das tensões sentidas até ao dia de hoje.

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Barragem de Santa Clara Rui Gaudêncio

Episódio traumático

Além da chuva, a diminuição da água da albufeira de Santa Clara está associada às explorações agrícolas no Perímetro de Rega do Mira (PRM) que nos últimos anos têm sido alvo de polémicas. Grande parte do PRM fica na charneca, no litoral do concelho de Odemira, onde há várias explorações de agricultura intensiva, parte das quais são estufas de frutos vermelhos. Para estas estufas funcionarem, milhares de trabalhadores asiáticos migraram para o concelho.

“Ninguém se apercebeu de que asiáticos em contentores no Sudoeste alentejano aos milhares não podem ser vistos como um factor de produção normal, como se isto fosse uma chave de parafusos”, observou Pedro Prista. “A autarquia de Odemira fez tudo quanto era possível e imaginário para conseguir que isto fosse visto” pelo poder central, adiantou o antropólogo: “A bolha que ninguém quis ver rebentou com o [vírus da] covid-19, quando aquela gente estava toda a contaminar-se umas às outras e passava para fora.” O fenómeno obrigou o Governo a impor, em 2021, cercas sanitárias a várias freguesias do concelho, para desalento e revolta da população.

No mesmo ano, perante a diminuição continuada da água na albufeira, a Associação dos Beneficiários do Mira (ABM), que gere aquele recurso, impôs um limite hídrico aos agricultores, a partir do qual o seu valor triplicava, o que teve um impacto gravoso para os pequenos agricultores que não tinham dinheiro. A ABM chegou a impedir que a água alimentasse o caudal natural do rio Mira.

“Foi um episódio bastante traumático”, recordou ao PÚBLICO, por telefone, Mariana Dias Coutinho. “Fizemos uma performance-manifestação desde o paredão da barragem até à aldeia de Santa Clara.” A escultora é artista residente do Plano Nacional das Artes do Agrupamento de Escolas de Sabóia e algumas das crianças com quem trabalha estiveram nessa manifestação de 2021. “Tinham a memória dessa acção e foi importante voltar a falar. Passaram-se dois anos, elas cresceram e o problema mantém-se.”

O tema da falta de água atravessa o contexto familiar dos alunos. “Têm avós e tios, familiares com terrenos que deixaram de ser abastecidos, e onde os poços secaram”, exemplificou a artista, que conhece a albufeira desde criança e veio viver para a região há cinco anos com Diogo Coutinho (que também conversou com o PÚBLICO) e os três filhos.

O projecto no agrupamento escolar vai no segundo ano e usa a arte como um veículo de aprendizagem, que permite aos estudantes aproximarem-se da realidade física que os envolve, num mundo que é cada vez mais digital. Mariana Dias Coutinho trabalha com o pré-escolar e o primeiro ciclo, e utiliza materiais como a terra para produzir pigmentos, que servem para colorir, e o barro presente na região, para os alunos fazerem peças.

“O projecto pretende criar modos de colaboração, total diluição de autoria de obras. Eles trabalham a várias mãos e a várias cabeças. Usamos sempre os materiais disponíveis à nossa volta para também haver essa curiosidade de olhar para a terra, para as plantas”, relatou a artista, que também faz parte da associação Project Earth, iniciada com o marido. “O factor mais impactante é eles perceberem que são peças de um todo e que juntos conseguem sempre chegar a lugares diferentes e têm uma voz mais alta, conseguem fazer-se ouvir.”

A importância do trabalho colectivo tornou-se central na actividade da artista desde que migrou para o interior de Odemira. “Cada vez crio mais projectos que convocam à participação. Porque acredito que juntos conseguimos chegar a lugares que sozinhos não conseguimos”, afirmou. “E é um processo sempre muito bonito quando partilhamos a tela, o tal chão, em que todos queremos compor e que temos que negociar uns com os outros. Temos que nos inspirar uns aos outros.”

Cultura de cuidado

Da Pousada de Santa Clara, é possível ainda observar o paredão da barragem, os meandros criados naturalmente pelo rio Mira, onde continua a correr água e, do lado esquerdo, o canal que sai da barragem e que vai alimentar o PRM. Apesar de estarem lado a lado, as duas saídas de água têm origens e objectivos muito diferentes. É daqui que vem o nome do projecto.

“É como se fosse um segundo nascimento do rio”, referiu Pedro Prista. O nome também está ligado a uma observação de Claude Lévi-Strauss. O famoso antropólogo francês dizia que “um pouco por todo o mundo o nascimento de gémeos está associado a perturbações meteorológicas”, adiantou o investigador português. “Achei esta frase uma sorte incrível. Nós temos alterações climáticas e temos aqui estas águas separadas. Portanto, chamei ao projecto Águas Gémeas.”

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O canal de rega que sai da barragem de Santa Clara Rui Gaudêncio

Há uma rede de 598 quilómetros de canais para alimentar 12.000 hectares de área agrícola do PRM. Além da forma como a água é gerida e da seca continuada, um terceiro problema é que entre fugas nos canais e água que não é aproveitada e acaba no mar, 40% do recurso é perdido. No fim de Novembro, a cota da água da albufeira estava pouco acima dos 105 metros, apenas 31% da sua capacidade máxima.

“Isto é um problema de má gestão e desigualdade. A escassez já resulta disto, do nosso modelo global socioeconómico. Temos um modelo ligado à concentração de poder que gera degradação”, resume Diogo Coutinho, presidente da associação Project Earth, que tem várias iniciativas comunitárias na região, e que veio até ao miradouro para falar com o PÚBLICO. “É um conflito muito grande entre o lucro de alguns e a necessidade do território. A água é vital e sem água estes territórios deixam de ser habitáveis e, por isso, as pessoas estão preocupadas.”

Diogo Coutinho participou no Colóquio Águas Gémeas, entre 29 de Setembro e 1 de Outubro, em Sabóia (outra aldeia perto de Santa Clara), que serviu de pontapé de arranque para o projecto. O engenheiro foi uma das pessoas vindas da comunidade e fez uma apresentação sobre os movimentos locais em torno da água. O seu olhar para a região parte de um pensamento sobre o cuidado.

“Pretendemos criar uma cultura de cuidado. Quando cuidamos uns dos outros, cuidamos aquilo que nos envolve, da natureza, dos animais”, explica Diogo Coutinho. Uma das iniciativas que desenvolve chama-se Aldeias à Vista. Uma vez por mês, há um encontro de portugueses e estrangeiros que residem ali. Num concelho grande que conta com mais de 90 nacionalidades, nem sempre as pessoas se conhecem.

“Muitas vezes não há esses momentos de encontro, há eventos para os portugueses ou para os estrangeiros. Achámos que é importante haver um local onde as pessoas se pudessem encontrar, conhecer e criar relações de confiança, para daí poderem surgir outras oportunidades”, explica Diogo Coutinho.

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Diogo Coutinho, presidente da associação Project Earth Rui Gaudêncio

Um dos objectivos da iniciativa é o nascimento de colaborações e processos de partilha entre as pessoas. A estratégia faz parte de um pensamento mais amplo sobre práticas regenerativas que passam por “trabalhar à escala do lugar”, adianta, procurando-se entender quais os potenciais de cada sítio e as soluções. E evitando ficar-se preso aos problemas.

“Só à escala do lugar é que conseguimos perceber as relações humanas e as relações com os ecossistemas”, defende Diogo Coutinho, argumentando que quando se fazem generalizações sobre economia ou agricultura não se está a ter em conta o lugar e, por isso, acaba-se por promover uma degradação dos territórios. “Tem de se criar uma forma de vivermos em harmonia com a natureza.”

Projecto em espera

O colóquio contou ainda com a participação de vários investigadores da área do ambiente e das alterações climáticas, como a geógrafa Maria José Roxo, o físico Filipe Duarte Santos e a socióloga Luísa Schmidt, que coordena o Observa. Mas também teve momentos ligados à arte, com jantares com performances criados pela coreógrafa Madalena Victorino e um momento musical de Miguel Azguime, músico e co-criador da Miso Music Portugal com Paula Azguime.

Houve também, no segundo dia, um bloco de eventos ligados à Noite das Ideias, com a curadoria do crítico literário e colunista do PÚBLICO António Guerreiro, que levou, entre outros, o escritor francês Jean-Christophe Cavallin, especialista em ecopoética.

Os três dias funcionaram como um “apelo à participação informada da população” no contexto do projecto, resumiu o antropólogo, que assinou em Março um contrato com a Câmara Municipal de Odemira, de cerca de 19 mil euros, para o início dos trabalhos. O projecto, inscrito no Observa, conta com sete antropólogos para fazer o trabalho de campo, mas ainda está à espera de começar.

Uma questão burocrática relacionada com a plataforma da empresa Vortal, que aprova a transferência de dinheiros públicos para projectos, está a impedir que o sinal verde para o financiamento seja dado. O antropólogo descreveu o processo ciberburocrático como uma “cadeia kafkiana”, sem fim à vista.

“Ficou toda a gente muito embaraçada, desde a câmara municipal à universidade, toda a gente a perceber que ninguém estava propriamente com culpa”, admitiu Pedro Prista. O PÚBLICO tentou falar sobre o assunto com Hélder Guerreiro, presidente da Câmara de Odemira, que apoia o projecto desde o início, mas não teve sucesso.

A barragem de Santa Clara Rui Gaudêncio
A margem despida da albufeira, devido à diminuição da água da barragem Rui Gaudêncio
O sistema de canos que retira água da barragem para o canal de rega Rui Gaudêncio
O sistema de canos que retira água da barragem para o canal de rega Rui Gaudêncio
O canal de rega que vai alimentar as produções agrícolas no litoral de Odemira Rui Gaudêncio
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A barragem de Santa Clara Rui Gaudêncio

Sem esse montante inicial, o antropólogo não conseguiu buscar mais dinheiro, que já estava prometido, a outros lugares. Isso põe em risco o Águas Gémeas? “Ele vai fazer-se seguramente, porque uma parte muito importante depende de mim. Estou reformado, tenho tempo e já tenho muita coisa recolhida”, respondeu o investigador, que antevê um livro no horizonte. Mas não é esse o seu desejo. “Este projecto era para sete alunos e para os envolver com estruturas locais: agrupamentos de escolas, associações ambientalistas, novos residentes. O que se pretendia era uma coisa que deixasse um movimento em marcha no lugar.”

Se o projecto integral se realizar, haverá trabalho de campo em três eixos: a história e a actividade ligada às dimensões tecnológicas do território, como a ferrovia, o cultivo e a exploração dos eucaliptos e o funcionamento da barragem; a população estrangeira, as histórias de vida desses habitantes, os seus desejos, equívocos e transformações, no contexto de um quotidiano dito natural; e a vida hortícola tradicional, que se mantém em algumas bolsas da região.

Depois, os três temas serão olhados em conjunto para se “pensar este lugar como um grande lugar de expressão do que é a condição” actual da humanidade, explicou o antropólogo. Paulo Prista vê-se diante de uma “parábola do Antropoceno”, onde é possível observar o que está a acontecer tanto numa escala pequena como numa escala grande, e tirar ilações.

“O pequeno agricultor que rega uns legumes não faz nada de radicalmente diferente dos engenheiros agrónomos que decidiram a barragem e que transportam água para as estufas, é um acto humano de utilização extractiva ou de acumulação de água”, descreveu. “Onde é que está o ponto de rotura? Há inúmeras sociedades em que a relação com a natureza é extractiva: na mesma natureza se caça para comer, se cultivam plantas ou se arrancam frutos. Mas qualquer coisa permanece sustentada nos ciclos sucessivos onde tudo isso se faz. Houve um determinado momento em que uma civilização particular rompeu com as escalas todas disto, espalhou-as pelo mundo global e produziu um efeito a que nós hoje chamamos Antropoceno.”

Tentar perceber aquele ponto de rotura é o aspecto que, ao nível antropológico, mais interessa a Pedro Prista. E como é possível saltar para um novo ciclo, uma nova forma de fazer as coisas. “De que modo isto nos pode dar um sinal qualquer de um sentido transformativo para a nossa relação com o mundo”, disse.

Comunidade de destino

Uma das respostas poderá estar na arte, pelo menos é isso que Miguel Azguime e Paula Azguime acreditam, cujo trabalho atraiu os olhos de Pedro Prista. O casal de músicos visita e frequenta o concelho de Odemira desde 2010 e já estabeleceu ali uma delegação da Miso Music Portugal, que criou nos idos de 1985. A dupla tem o projecto de ir viver para a região nos próximos anos. “É de facto inspirador pela tranquilidade e pela beleza que tem”, descreveu Miguel Azguime, por telefone, ao PÚBLICO.

O compositor apontou também o lado humano. “Há uma multiplicidade de culturas, de pessoas de áreas diferentes. É uma terra que tem esse lado que a torna muito acolhedora e fomentadora de desenvolver outras iniciativas. Os alentejanos que tenho conhecido daquela região, do ponto de vista humano, têm sido uma lição de vida. Por incorruptíveis que são, honestos, frontais”, descreveu.

O resultado deste amor com Odemira já produziu vários projectos locais com a comunidade. Mas a dupla quer criar a Estação das Artes, num grande armazém de cereais situado na Estação de Santa Clara-Sabóia, que estava abandonado e necessita de ser recuperado. Se tudo correr bem, ou seja, se houver financiamento, a Estação das Artes poderá abrir no final de 2024 ou em 2025.

“O espaço vai permitir acolher uma orquestra, dança, teatro, cinema. A programação vai abarcar todas as épocas, muitos géneros”, adiantou Miguel Azguime. Devido à falta de opções culturais no concelho, a oferta terá de ser mais diversificada, com o objectivo de formar público. “Vamos ter uma sala polivalente, que vai servir de espaço expositivo, de convívio, vamos tentar reanimar aquela estação, poder criar um elo, uma espécie de âncora.”

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A água da albufeira de Santa Clara, alimentada pelo rio Mira e os seus afluentes Rui Gaudêncio

Mas o impulso para a aventura também pode ser o fruto de uma consciência que o par ganhou ali. Nos 13 anos de visitas à região, o músico já notou uma mudança drástica ligada à seca. Além das faces despidas da margem da albufeira, vários caminhos que Miguel Azguime percorreu nos primeiros anos, na altura verdejantes, com água a correr, actualmente “estão totalmente secos”, descreveu.

“Inicialmente era só o paraíso, neste momento já há alguma nostalgia do paraíso perdido, o que é estranhíssimo, porque, segundo o que apontam todos os estudos, aquilo já não vai voltar atrás”, referiu Miguel Azguime, que também integrou o Colóquio Águas Gémeas com a obra Aliterações de Água interpretada pela soprano Camila Mandillo.

A confrontação com esta realidade mexe com a arte que se produz. “Acho importante que a arte tenha em conta o contexto do qual ela se desenvolve. Neste caso, e falando do problema ecológico e do climático, é preciso ter em conta o contexto em que estamos a viver”, assumiu, defendendo um lugar de indígena e de arte indígena associados. “Se queremos salvar a Terra e salvar a nossa pele, passamos obrigatoriamente a ser indígenas. Há que mudar de paradigma de vida, de modelos de consumo, de produção. Se não, não temos hipótese”, vaticinou.

Para o músico, essa arte indígena, situada geograficamente, deve tirar proveito do mundo globalizado, com a sua “transversalidade de culturas” e “intertextualidade de pensamentos”, já que o problema a enfrentar é de cariz planetário. “O problema dos índios da Amazónia e o problema das gentes de Santa Clara é o problema de todos nós. Além de termos uma terra que é una e é de todos e para todos, somos uma comunidade de destino, porque temos um destino comum”, disse.

Por isso, a arte que nasce em Santa Clara deve ser levada tão a sério como a que é produzida em Lisboa e em Berlim. Mas que respostas poderá essa arte dar ao problema do Antropoceno? “Por definição, a arte é prospectiva”, respondeu Miguel Azguime, explicando que é difícil antever. “Ela vai ser aquilo que for capaz de ser, de descobrir e construir. Não é fazer o novo pelo novo, mas fazer algo que vai permitir várias e renovadas leituras, vai permitir pensar o futuro. É aquilo que ela traz com a possibilidade de novas leituras que permite construir um novo futuro.”