Quem está a dividir o movimento pela justiça climática?

Se é para ficarmos num planeta habitável, será preciso mesmo parar tudo e pensar o que fazemos para travar esta aflição.

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1. Com as novas ondas de ações pela justiça climática, o debate público sobre o significado da emergência climática ganhou alguma visibilidade. Bloquear estradas, atirar tinta a políticos, quebrar vidros de empresas poluentes, interromper eventos culturais, pintar as fachadas de edifícios de decisão, ocupar faculdades e mais diversas ações para alertar a população que o sistema capitalista está a destruir as condições físicas da civilização como a conhecemos. Tendo em conta que milhares marcharam pelo clima em 2019 e há agora um consenso político à volta da Lei de Bases do Clima, o que é que estas ações estão a fazer ao movimento?

2. Existe um movimento que está a ser dividido pelo realismo climático. Há um movimento alargado em Portugal e pelo mundo inteiro, que é o movimento que defende que 4,4ºC de aquecimento é melhor que 4,5ºC de aquecimento. É um movimento que não tem nem quer ter uma estratégia para nos manter abaixo de 2ºC de aquecimento. Não é um movimento pelo clima, é um movimento pelo colapso climático. As famílias das 10 mil pessoas que morreram nas cheias de Líbia sabem que não existe, ainda, um movimento pela justiça climática: um movimento cujo objetivo não-negociável é ganhar um planeta habitável. Em Portugal, esse objetivo implica, pelo menos, neutralidade carbónica até 2030 e eletricidade 100% renovável e accessível até 2025. Dentro do movimento pelo colapso climático, há pessoas e grupos que acham que era porreiro se tivéssemos estas políticas. Contudo, um movimento pela justiça climática só pode consistir em quem não consegue dormir sem estar a ganhá-las.

3. Se a minha casa está a arder, eu só vou conseguir dormir tranquilamente depois de apagar o fogo. Se digo que a minha casa está a arder e que era bom que parasse de arder mas depois volto a dormir, então mostro a todas as pessoas à minha volta que na verdade não acredito no fogo. Mais, e se eu vejo pessoas vestidas de bombeiros a pôr lenha no fogo e os meus vizinhos acham que os bombeiros já chegaram? O que devo fazer? Ou seja: se eu sei que estamos a 1,2ºC de aquecimento e já vivemos incêndios, cheias, tempestades e secas sem precedentes e que estamos a caminho de 3 a 4ºC de aquecimento de acordo com os planos dos governos e das empresas, o que faço? Se não existe uma única empresa petrolífera com planos de descarbonização, se não existe um único país com planos compatíveis com menos de 2ºC aquecimento, se os subsídios para os combustíveis fósseis estão a aumentar, o que faço? Dizer que estamos em estado de emergência climática não é uma frase de propaganda. É fazer uma paz conflituosa com o tempo em que estamos vivos e a responsabilidade que temos. Se é para ficarmos num planeta habitável, será preciso mesmo parar tudo e pensar o que fazemos para travar esta aflição.

4. As ações não estão a polarizar a sociedade mais do que estão a destacar a polarização já existente. Há, no entanto, dois argumentos interessantes que dizem que estas táticas e esta comunicação alienam as pessoas, e que gostaria de explorar um pouco.

5. O primeiro argumento é que se deve respeitar o funcionamento normal da sociedade. Este argumento por vezes é sobre submissão aos políticos eleitos, às vezes é sobre deixar as pessoas irem ao trabalho. No fundo, o argumento é que a crise climática não é assim tão má: não vivemos num colapso civilizacional. Se o teu edifício estiver a arder, eu não vou mandar-te uma carta para te convidar a uma palestra sobre proteção civil, vou só fazer tudo para te alertar, porque sei que vais perceber. Se o teu edifício estiver a arder, eu “respeitar” o teu direito a ver uma série na sala é eu desrespeitar a tua existência.

6. Este argumento é colado a um segundo, que é ainda mais interessante: as pessoas não têm noção, por isso temos de sensibilizar em vez de incomodar e chocar. De acordo com esta lógica, se eu reparar num edifício a arder, não devo bater nas portas, até partir as portas, parar tudo que as pessoas lá dentro estão a fazer (mesmo que seja muito importante para elas) e dizer-lhes que têm de agir já, já, já, já. Não devo fazer nada disto, porque “as pessoas não vão perceber” e vão só ficar chateadas comigo. O elitismo inerente a este pensamento paternalista é tão perturbador que me faltam palavras.

7. Mas o mais interessante é que não aceitamos estas abordagens em qualquer outro assunto sério: o movimento feminista luta com o lema “nem mais uma”, não luta por “menos uma morte anual”; o movimento antiracista não esconde o racismo estrutural por a maioria da população achar que o racismo em Portugal não é assim tão mau; ninguém lutou por uma redução lenta e gradual da escravatura; não se exige “um pouco menos de bombardeamentos” em Gaza ou na Ucrânia. Em todos estes assuntos, não se fala de uma “cisão” do movimento, fala-se de integridade, somente.

8. Há umas semanas, estive sentado numa rua com uma faixa que diz “Eles estão a destruir tudo que amas.” Várias pessoas falaram connosco, algumas em apoio outras contra. Passado várias semanas, amigos que nunca falaram comigo sobre o clima, começaram conversas por causa das ações e, sem a minha intervenção, em menos de três minutos já estavam a falar dos recordes de temperatura na América do Sul e do novo gasoduto que é vendido como verde mas na verdade vai transportar gás fóssil. Nesse dia, depois de alguns minutos, a polícia prendeu-me por estar a protestar, e passei o dia todo na esquadra. Enquanto estive na esquadra, a tempestade Aline causou inundações e quedas de árvores (cerca de 3500 ocorrências no total) e a circulação na IC19 foi cortada pela polícia por causa das cheias. Mas fui eu quem foi constituído arguido por atentado à segurança rodoviária nesse dia.

9. Temos mesmo de parar, e falar sobre como vamos parar a crise climática. Os governos e as empresas não estão no nosso lado – estamos sozinhos e somos milhões. Está em construção um verdadeiro movimento pela justiça climática: um movimento ancorado em travar o colapso antes dele se tornar irreversível, um movimento que diz a verdade a si próprio e à sociedade.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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