O oceano é um “super-herói” na protecção contra as alterações climáticas. A COP28 vai reconhecê-lo?
Pascal Lamy, antigo líder da Organização Mundial do Comércio, admite a dificuldade em se valorizar o capital natural quando o que o sistema actual se define através de fórmulas como a do PIB.
“É uma ilusão acharmos que precisamos de explorar a natureza a este nível – não é sustentável.” As palavras da oceanógrafa Sylvia Earle, na COP28, soaram como um alerta para a necessidade de limitar o impacto destrutivo que determinadas actividades humanas têm tido no oceano, na biodiversidade, no clima – em suma, no planeta. “Não é sustentável. Temos que chegar ao ponto em que dizemos que já chega, temos que restaurar o que conseguirmos enquanto ainda há tempo”, alertou a histórica cientista norte-americana, que falava num painel sob o mote “somos todos espécies dependentes do gelo”.
No seu 9.º dia, a cimeira do clima das Nações Unidas, que acontece até 12 de Dezembro no Dubai, Emirados Árabes Unidos, dedicou-se às matérias de conservação da natureza, oceano e usos do solo (onde se inclui a desflorestação), áreas que representam pouco lucro em termos de exploração económica, e ficam por isso mais longe dos grandes anúncios da COP, como o investimento em energias renováveis.
Mas este panorama tem mudado, ainda que lentamente. “O reconhecimento da interacção entre o oceano e o clima – o facto de o oceano ser simultaneamente um problema devido ao aquecimento global, mas também uma solução para ajudar a desenvolver uma economia azul sustentável –, está agora mais perto do centro das atenções”, assegura Pascal Lamy, antigo director-geral da Organização Mundial do Comércio e presidente da plataforma Paris Peace Forum, em conversa com o Azul.
“A conversa sobre o clima tem sido muito sobre o ar e a terra, e não tanto sobre os outros 70% do planeta, a hidrosfera: o oceano, os rios, os lagos, os glaciares, já agora, que fazem parte desse quadro”, descreve Lamy, actual presidente da missão da União Europeia “Recuperar os nossos oceanos e águas até 2030”, que tem trabalhado com actores locais para encontrar soluções para a conservação do oceano. “Ainda não estamos onde deveríamos estar, mas estamos a avançar.”
Protecção ao alto-mar
E ao avançar mar adentro, para a zona fora da jurisdição dos Estados – mais de metade da superfície marinha do planeta –, o problema da conservação torna-se mais agudo. “Vamos encarar a realidade: a grande maioria do mundo nunca vai ver o mar”, explica Rebecca Hubbard, directora da High Seas Alliance, que reúne organizações dedicadas à protecção do oceano. “Os mais privilegiados poderão até voar sobre o alto mar, e alguns ultra-privilegiados poderão explorá-lo ou estudá-lo. Mas, no geral, muitas pessoas não chegarão sequer perto do mar, ou seja, não faz parte da sua visão de mundo, da sua experiência quotidiana”, recorda a especialista em ciências ambientais, com um vasto percurso em organizações não-governamentais.
Contudo, sublinha, o facto é que “metade do planeta e toda a vida que está no alto mar é essencial para o nosso sistema de regulação climática, o nosso ciclo da água, a segurança alimentar, as transferências de energia”, descreve. Mais importante no contexto da COP28: o oceano tem absorvido “mais de 90% do excesso de calor que criámos”, explica Hubbard. “É o nosso super-herói no que toca a proteger-nos das alterações climáticas. Mas é também o menos protegido”, nota a australiana. “Apenas cerca de 1% do alto mar está protegido.”
O alto mar – “é sempre bom explicar, nota Rebecca Hubbard – é a área “para além das jurisdições nacionais, ou seja, para além das 200 milhas náuticas, onde os países gerem as suas águas”. E foi apenas em Março deste ano que se conseguiu fechar o Tratado do Alto Mar, um acordo histórico sobre a biodiversidade no oceano que tornou juridicamente mais claro, entre outras conquistas, a criação de áreas marinhas protegidas no alto mar.
PIB não valoriza capital natural
O que será preciso, então, para se atribuir mais valor à preservação destes elementos naturais do que à sua exploração para proveito económico? “Uma avaliação correcta do capital natural”, responde Pascal Lamy. “Com o sistema que temos actualmente, com fórmulas como o PIB, é claro que não valorizamos o capital natural”, explica.
Já tem havido algumas iniciativas como as reconversões de dívida em créditos de fundos ambientais (como os acordos que Portugal assinou com Cabo Verde e São Tomé e Príncipe) ou os mercados voluntários de carbono, que estão também a ser trabalhados nestas negociações da COP28, mas ainda necessitam ter a garantia de “infra-estrutura, na regulação de parâmetros, de uma taxonomia”, explica Lamy.
Para os próximos dias desta COP28, em que os ministros do ambiente, clima e energia encabeçam as negociações que vão até ao mínimo detalhe, o desafio será incluir no texto final – em particular o balanço global (global stocktake) –, um reconhecimento mais claro da complexa interacção entre o oceano e o clima, e da importância de incluir esta dimensão nos futuros planos nacionais que, espera-se, poderão levar os países a um caminho pais próximo do que ficou combinado no Acordo de Paris.
O PÚBLICO viajou a convite da Fundação Oceano Azul