Luísa Schmidt: “Tem de haver uma relação cultural, emotiva e profunda com o planeta”
Socióloga organizou livro sobre os últimos 50 anos de políticas ambientais em Portugal: “O ambiente é absolutamente transversal a tudo aquilo que é vida actual e futura do país.”
Esta semana foi editado o livro 50 Anos de Políticas Ambientais em Portugal – Da Conferência de Estocolmo à Actualidade. A obra, organizada por Luísa Schmidt, socióloga e coordenadora do Observa – Observatório de Ambiente, Território e Sociedade, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, traça meio século da evolução das políticas ambientais do país, tendo como momento zero a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, em Estocolmo, em 1972, onde pela primeira vez foi avaliado o impacto da actividade humana no planeta.
Portugal foi convidado a participar nessa conferência, quebrando um isolamento diplomático de décadas devido à ditadura do Estado Novo. O convite fez com que o momento zero das políticas multilaterais sobre desenvolvimento e ambiente atingisse também Portugal, com consequências até hoje. O livro traz testemunhos de personalidades que estiveram envolvidas no trabalho que conduziu à Conferência de Estocolmo, avalia os impactos daquela conferência e mostra a evolução das políticas ambientais em Portugal em áreas como os recursos hídricos, as florestas, a conservação da natureza e a educação ambiental. É “um livro contra o esquecimento”, diz ao PÚBLICO Luísa Schmidt, numa entrevista feita por telefone.
Este livro nasce de uma conferência ocorrida em 2022 sobre os 50 anos da Conferência de Estocolmo. Porquê marcar essa efeméride?
As Nações Unidas, com a abertura trazida pela “primavera marcellista”, convidaram o país a participar na conferência. Isso é um marco muito importante, porque é nessa altura que se cria a Comissão Nacional do Ambiente, ou seja, também a Portugal chegaram as políticas ambientais com a Conferência de Estocolmo.
Data de 1972 o primeiro relatório sobre o estado do ambiente em Portugal, coordenado pelo engenheiro José Correia da Cunha, deputado da Ala Liberal da Assembleia Nacional, que também denunciou uma série de casos [na Assembleia Nacional], inclusivamente o problema do desordenamento do território e da pobreza que se estava a criar à volta de Lisboa.
Não nos podemos esquecer que em 1974 houve cólera em Lisboa. Foi um momento muito importante, que preparou aquilo que vem a acontecer a seguir ao 25 de Abril [de 1974], a consagração da administração pública, do Governo, de uma subsecretaria de Estado do Ambiente, na altura liderada pelo arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles.
O livro fala dessas figuras importantes que fizeram avançar o pensamento sobre o ambiente em Portugal, mas num contexto de uma sociedade muito atrasada.
Chegámos aos anos 70 como uma espécie de museu rural da Europa, 40% de população activa ainda trabalhava na agricultura. As pessoas viviam no interior. Menos de metade da população tinha acesso à água canalizada. Um pouco mais de metade da população tinha acesso à electricidade. O país não se tinha industrializado. A contabilidade da altura era de 100 mil barracas e 80 mil clandestinos na zona de Lisboa. Daí esse problema enorme, que a seguir ao 25 de Abril se torna a prioridade, que é o realojamento das pessoas.
Em que medida é que o atraso educacional travou os avanços ambientais?
Até bastante tarde havia uma grande iliteracia em Portugal. A questão do conhecimento é fundamental quando falamos nas questões ambientais. Há uma articulação muito grande entre as questões ambientais e as questões de saúde: ter ou não ter espaços verdes nas cidades, a questão da poluição do ar e do excesso de dependência rodoviária. Para tudo isso é fundamental a educação ambiental e o conhecimento. A literacia ambiental é importantíssima para percebermos o valor das coisas, que o valor da natureza é importante para o nosso bem-estar, para a nossa boa água, para os nossos bons solos. Esse conhecimento é que depois nos leva a querer manter e cuidar daquilo que é a nossa relação com a natureza.
Quais foram os principais avanços desde então?
A questão da água para consumo humano melhorou bastante, sobretudo a partir de meados de 1990, a ponto de se chegar a 2005 com uma nova Lei da Água e o abastecimento generalizado com qualidade. No início dos anos 90, os rios estavam totalmente poluídos por causa da falta de tratamento de esgotos. Com a adesão à União Europeia [então Comunidade Económica Europeia], com a vinda dos fundos europeus, foi importante a evolução da ligação aos esgotos, tudo o que diz respeito ao saneamento básico, às estações de tratamento de águas residuais. Outra coisa que evoluiu foi o surgimento das energias renováveis. Hoje produzimos uma percentagem muito elevada da electricidade que consumimos.
Depois, também melhorou a educação ambiental. Para as gerações mais novas, é um tema cada vez mais importante. A cidadania ambiental também passou a estar mais afirmativa e atenta. Vemos isso com os movimentos locais, mesmo que temporários e às vezes por uma causa, como simples espaços públicos verdes.
Também melhorou a fiscalização. A criação da Inspecção-Geral do Ambiente e depois do Serviço de Conservação da Natureza e do Ambiente da GNR, criado em 2002, que têm desenvolvido um trabalho importante, notável, mesmo que depois continuemos confrontados com a falta de celeridade da Justiça.
Mas o livro também traz uma visão crítica da evolução das políticas do ambiente. Há ciclos e contraciclos políticos, avanços e recuos. Que factores determinam estes atrasos?
Muitas das medidas foram tomadas a partir do topo, de cima para baixo, sem amadurecimento democrático e sem base social de apoio. Algumas directivas europeias foram transpostas, mas não foram debatidas. Muitas medidas de conservação da natureza não são debatidas, não criam espaço social de apoio. Isso é muito importante.
Por outro lado, houve enormes descontinuidades. Acabou-se com a autonomia das administrações regionais hidrográficas. A lógica é que a bacia hidrográfica funcione desde a fonte até à foz. Essas administrações tinham capacidade de gerir a bacia e de envolver as comunidades na própria gestão, também de aplicar a taxa do poluidor-pagador e do utilizador-pagador. O dinheiro revertia para a própria bacia. Isto é uma coisa que acontece em Espanha, em França e em vários países europeus. Aqui estava a funcionar muito bem e acabou-se com isso.
Depois, acabou-se com a Agência Florestal Nacional e juntou-se com o Instituto de Conservação da Natureza, criando-se o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas. Perderam a conservação da natureza e a gestão florestal. Anteriormente, também já se tinha acabado com a figura do director das áreas protegidas. Somos praticamente o único país do mundo que não tem directores de áreas protegidas e de parques naturais. Essas ausências de continuidade no desenho institucional acabam por afectar as linhas estruturantes de funcionamento, que são cruciais.
Acontece muitas vezes uma certa mascarilha jurídico-política. Ciclicamente há um consentimento em relação ao incumprimento de leis ambientais. A reserva agrícola nacional, a reserva biológica nacional, aqueles projectos de potencial interesse nacional que se sobrepõem a tudo, este simplex ambiental que em algumas coisas vem resolver, outras vem facilitar de mais.
Nesse contexto, qual a importância deste livro?
Gostava que fosse um livro contra o esquecimento, que ajuda a esclarecer a dinâmica e o processo do ambientalismo e das leis e políticas ambientais em Portugal, ao longo de 50 anos. Um incentivo para a acção e intervenção, e um instrumento de trabalho, um livro contra o afunilamento, contra a sectorialização do ambiente, olhando para ele de uma forma transversal, no qual se possa consultar tanto as políticas como as leis e instituições que foram sendo criadas, os acontecimentos mais marcantes, os conflitos, os avanços e os retrocessos, as acções e as inércias.
Escreve um dos capítulos, em que afirma que “o desordenamento do território continua a ser o problema fulcro do ambiente”. Porquê?
Nas políticas públicas ambientais, a implementação do planeamento fica sempre aquém daquilo que se desejava. Hoje, praticamente 85% da população vive a menos de 50km da costa, 54% vivem a menos de 10km da costa. Construíram-se urbanizações inteiras em zonas dunares. Isto é desordenamento do território. A adaptação às alterações climáticas sai-nos mais cara, porque construímos em zonas costeiras, em encostas, em leitos de cheia. Qualquer chuvinha a mais em Lisboa e em Algés inunda logo tudo.
As centrais solares que são necessárias ao país deviam ser planeadas. Quais são os sítios onde elas não têm impactos ambientais graves e onde têm melhores ligações. Temos lítio em vários sítios do país, mas era muito importante planear onde é que a extracção de lítio é menos impactante do ponto de vista ambiental, social e económico. E não ficar à espera que venham as empresas dizerem onde o querem fazer. O planeamento continua a ser uma coisa que nos fica curta nas mangas, como diria o Eça de Queirós, e nós temos de fazê-lo para podermos garantir um melhor funcionamento no país, menos impactos ambientais, sociais e económicos.
Estamos em mais um momento de transição política. Teme que haja mais um marcar de passo no avanço das políticas ambientais?
Sim. Uma das constantes no ambiente é a agenda ziguezague e a falta de continuidade na intervenção de sucessivos governos. Não é só o nome do ministério que muda constantemente, nem o desfile de ministros e de secretários de Estado, é a descontinuidade constante na resolução de problemas, muitas vezes fazendo tábua rasa de políticas anteriores. As questões ambientais são transversais e, portanto, têm de se integrar nas outras políticas e têm de ser levadas a sério.
O ideal seria um pacto de regime?
O ambiente é absolutamente transversal a tudo aquilo que é vida actual e futura do país – a floresta, as águas, a biodiversidade e as áreas protegidas. Deveria haver pactos de regime para estas áreas que são absolutamente centrais para o nosso futuro; a questão das áreas marinhas e da relação com o mar, todo esse cluster é importantíssimo. E pode haver. É só uma questão de vontade política, abertura de espírito e uma nova noção de continuidade. Temos de ter uma nova relação cultural com a natureza e com o ambiente, mesmo em termos internacionais. Estamos na COP28. Se nós não mudarmos a nossa relação cultural e ética relativamente ao planeta e à terra, não vamos conseguir chegar a acordos.
Em que consiste essa mudança?
Temos de transformar a nossa relação com o planeta e os recursos. Tem de haver uma relação cultural, emotiva e profunda com o planeta e a terra. Quebrar o quadro clássico de oposição entre ambientalismo e industriais do petróleo, e reconfigurar esta relação em outros termos. Acelerar a transição energética é muito importante para nos libertarmos dos combustíveis fósseis e entrarmos na energia limpa. E claro que temos de fazer contas ao agravamento do pico de carbono que estamos a viver, mas é preciso mudar a relação com os recursos naturais – como diz o Bruno Latour no seu último livro: "Quem perde a terra, perde a alma". É preciso não esquecermos os imperativos éticos e científicos que continuamos a ter de defender e cumprir, se quisermos ter um planeta viável. E também não deixarmos que haja uma regressão ambiental, que pode ser ruinosa do ponto de vista ambiental, económico e humano, que alguns interesses, sobretudo os ligados às grandes petrolíferas, f0rçam.