Há já um primeiro rascunho da declaração final da Cimeira das Alterações Climáticas das Nações Unidas que está a decorrer no Dubai (COP28) que contempla o abandono dos combustíveis fósseis – talvez a questão mas importante e também mais polémica desta grande conferência. Mas a Arábia Saudita, um dos grandes produtores de petróleo mundiais, já fez saber que se opõe a essa ideia.
“Absolutamente não”, disse o ministro da Energia saudita, o príncipe Abdulaziz bin Salman, meio-irmão do governante de facto do reino, Mohammed bin Salman, numa entrevista à Bloomberg, a partir de Riad. A pergunta era se a Arábia Saudita concordaria com uma declaração final da COP28 que falasse no abandono das energias fósseis – o petróleo, o gás natural e o carvão.
“Não vou dizer nomes. Mas esses países que defendem abandonar ou reduzir o uso de hidrocarbonetos deviam montar um plano para começar a fazer isso mesmo, a partir de 1 de Janeiro de 2024”, desafiou Abdulaziz bin Salman, sugerindo que estes apelos são hipócritas. “Garanto-lhe que não há ninguém – nenhum governo – que acredite nisso”, disse à Bloomberg.
Um relatório do Programa das Nações Unidas para o Ambiente divulgado em Novembro concluía que em 2030 se produzirá mais que o dobro da quantidade de combustíveis fósseis que seria compatível com o aquecimento global se limitar a 1,5 graus.
O novo documento de trabalho, que os perto de 200 países presentes na COP28 vão usar para discutir como será a declaração final, fala no “abandono ordeiro e justo” dos combustíveis fósseis – na linguagem das Nações Unidas, "justo" sugere que os países com uma história mais longa de queima destes combustíveis, como os da União Europeia e os Estados Unidos, deveriam pô-los de lado antes dos que se industrializaram mais tarde, explica a Reuters.
O Uganda, Moçambique e outros países africanos com baixas taxas de acesso à electricidade têm planos para desenvolver ou expandir a sua produção de petróleo e gás natural. “Dizer ao Uganda que tem de parar de usar combustíveis fósseis é mesmo um insulto. É como dizer-nos que temos de continuar pobres”, declarou à Reuters a ministra da Energia ugandesa Ruth Nankabirwa.
Mas alguns representantes de nações africanas poderiam aceitar um abandono a longo prazo dos combustíveis fósseis, se a linguagem da declaração tornasse claro que os países em desenvolvimento poderão ainda usar os seus recursos naturais no curto prazo, enquanto os mais ricos dão os primeiros passos para deixar os hidrocarbonetos. “Primeiros a começar, primeiros a sair – ficaremos felizes por sermos os últimos a deixar os combustíveis fósseis”, comentou Nankabirwa.
Mas, por ora, é como um jogo de aposta múltipla, em que são contempladas várias hipóteses, que as negociações se encarregarão de eliminar e modificar até se chegar a uma formulação final. Uma das possibilidades é que “se acelerem os esforços no sentido de acabar com os combustíveis fósseis não compensados”. A terceira hipótese, diz a Reuters, é o regresso à linha zero: não menciona, de todo, o abandono dos combustíveis fósseis.
“O que estamos a ver aqui é uma verdadeira batalha sobre qual será o sistema energético do futuro que vamos construir juntos”, declarou Jennifer Morgan, enviada para o Clima da Alemanha às negociações da COP28.
Tema tabu
Os combustíveis fósseis estão na origem de 80% das emissões de gases com efeito de estufa que causam as alterações climáticas. E, no entanto, só na 28.ª conferência dos signatários da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as alterações climáticas – a COP28, que está a decorrer no Dubai – é que o abandono do carvão, do petróleo e do gás natural ganhou o direito de ser um tema de agenda de pleno direito.
Não é nada certo que na COP28 os perto de 200 países presentes consigam pôr-se de acordo numa declaração para “reduzir” ou “abandonar” – vai todo um mundo de diferença entre estas duas expressões – os combustíveis fósseis. Em 2021, o presidente da COP26, o britânico Alok Sharma, foi levado até às lágrimas quando a declaração sobre o abandono do carvão teve de ser aligeirada para “redução” do uso do carvão, mesmo na recta final da conferência.
A Índia e a China recusaram-se a apoiar esta linguagem na COP26. Impuseram que as nações em desenvolvimento “têm ainda de lidar com as suas agendas de erradicação da pobreza”. Estes dois gigantes asiáticos ainda hoje continuam a aumentar as suas emissões de combustíveis fósseis: na Índia, devem aumentar 8,2% este ano, e na China 4%, segundo os dados do relatório do projecto Global Carbon Project, divulgado esta semana.
Embora os combustíveis fósseis estejam no coração do problema, há o que se pode chamar um “tabu” sobre este tema nas negociações internacionais sobre as alterações climáticas, nota o jornal francês Le Monde: nunca a palavra “fóssil” surgiu em nenhuma decisão adoptada nas cimeiras do clima (COP) até 2021, e também não figura no Protocolo de Quioto de 1997, o primeiro instrumento para tentar limitar as emissões de gases com efeito de estufa.
Nem sequer no Acordo de Paris, de 2015, através do qual os países se comprometeram (sem que sofram quaisquer consequências se não o cumprirem) a reduzir as suas emissões para tentar evitar que a temperatura média do planeta no fim deste século não seja mais do que dois graus acima do que era antes da Revolução Industrial ou, preferencialmente, 1,5 graus. “Tentámos muitas fórmulas, uma das quais o abandono progressivo dos combustíveis fósseis. Mas suscitou um bloqueio total”, recordou ao Le Monde Laurence Tubiana, uma das arquitectas do Acordo de Paris.
A aquecer
O mundo está lançado numa trajectória que nos levará a exceder um aquecimento global de dois graus, dizem vários estudos, entre os quais o do Global Carbon Project. Uma análise feita pela empresa de análise e investigação Rhodium Group , destacada pelo New York Times, fala num aquecimento em média de 2,8 graus até ao fim deste século.
Os Estados Unidos, a União Europeia e os 58 Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento (conhecidos pela sigla SIDS em inglês) estão a fazer pressão para que seja usada uma linguagem que apele claramente ao abandono dos combustíveis fósseis. "A UE quer que esta COP marque o princípio do fim para os combustíveis fósseis", disse o comissário europeu Wopke Hoekstra. Só assim se poderão reduzir as emissões em 43% até 2030 (tendo como referência os valores de 2010), o necessário para cumprir o Acordo de Paris.
Mas nenhum país ou grande empresa petrolífera tem planos para parar de explorar petróleo ou gás natural, salienta o consórcio Net Zero Tracker, um registo online de compromissos com a neutralidade carbónica de países, regiões, cidades e grandes empresas, que tem como parceiros universidades e centros de investigação.
As petrolíferas, aliás, têm defendido que as atenções se devem centrar no corte de emissões – e não na produção.
Mas há muita pressão para finalmente haver uma declaração sobre o tema. “Não podemos sair do Dubai sem ter alguma linguagem e direcção claras no sentido do abandono dos combustíveis fósseis”, disse David Waskow, director da iniciativa do clima da World Resources Institute, citado pela Reuters.
Truques de linguagem
Qual a linguagem usada, no entanto, será determinante. Veja-se, por exemplo, o uso da palavra “unabated”, que em português será qualquer coisa como “não compensado” ou “sem abatimento“. Os negociadores climáticos têm-na conjugado com “combustíveis fósseis” e “emissões” para se referirem a dióxido de carbono lançado para a atmosfera que não seja capturado recorrendo a novas tecnologias de captura e armazenamento de carbono, o que representaria um “abatimento” à quantidade de CO2 emitido.
Os Estados Unidos e a União Europeia apoiam um acordo na COP28 que reconheça o papel destas tecnologias. Mas não querem que sirvam como uma escapatória usada pelas petrolíferas e pelos países produtores de combustíveis fósseis para continuarem a emitir CO2.
Estas tecnologias são ainda experimentais, e consomem uma grande quantidade de energia para funcionar. Um estudo recente, citado pelo New York Times, concluía que descontando a energia usada para capturar e isolar o CO2 numa central que usa combustíveis fósseis, o sistema apenas reduziria as emissões líquidas daquela instalação industrial em 10 a 11% – não os 80 a 90% citados por quem apresentou o projecto.
Esta ideia é considerada uma falsa solução pelos ambientalistas e muitos cientistas. “Mesmo que se conseguisse que isto funcionasse, ainda seria absurdo fazê-lo no nosso planeta, onde em 2023 sabemos como capturar a energia do Sol de forma barata para produzir energia”, nota o escritor e ambientalista norte-americano Bill McKibben na sua newsletter na Substack.
“Se a energia produzida com recurso ao carvão ou gás já é consideravelmente mais cara do que a energia solar, imaginem o que seria essa diferença de custo se lhe acrescentarmos um enorme complexo de canalização e bombas para tirar o CO2 da atmosfera e conduzi-lo a alguma mina de sal abandonada para ser armazenada”, comenta McKibben.
No entanto, as negociações em torno da declaração sobre o fim (phase out, em inglês) ou redução (phase down) dos combustíveis fósseis estão a fazer-se à roda desta palavra e do que nela está implícito. Porque esse é o interesse das empresas petrolíferas, e dos Estados com grandes interesses na produção e uso de combustíveis fósseis – como o próprio país anfitrião da COP28, os Emirados Árabes, que são o sétimo maior produtor mundial de petróleo e o 15.º de gás natural, e prevê enormes investimentos na produção de energias fósseis para esta década. A COP28, aliás, é presidida pelo homem que dirige a petrolífera nacional, Sultan Al Jaber.
Foca-se muita atenção sobre os termos phase out e phase down, mas podia ser mais proveitoso que as negociações se concentrassem noutros pormenores, sublinhou um diplomata do Departamento de Estado norte-americano ao jornal Washington Post, que não foi identificado por não estar autorizado a comentar este tema. A diferença entre abandonar e reduzir o uso de combustíveis fósseis, disse, é menos importante do que estabelecer um calendário para a transição.
“Pode ficar escrito que haverá um abandono até 2100, e isso é muito mais fraco do que redução até 2050”, sublinhou este diplomata. Nas negociações, pode haver um efeito de funil, uma concentração excessiva numa ou duas palavras; alargar horizontes e usar a riqueza da linguagem pode permitir encontrar saídas para um compromisso diplomático que, à partida, parece impossível.