Numa passagem que representa a origem do pensamento europeu acerca da infância, o poeta e filósofo romano Lucrécio refere que o recém-nascido, “tal como o marinheiro arremessado pelas ondas ferozes do mar, estende-se nu sobre o solo, sem fala e indefeso, no momento em que a natureza o lança, através do ventre da sua mãe, para as praias da luz. E enche o lugar de um choro intenso, como é natural para quem desconhece ainda a vida”.
A noção de fragilidade física e emocional dos bebés logo após o nascimento é complementada muito mais tarde a partir dos contributos da psicanálise, destacando-se autores como René Spitz e John Bowlby, que reforçaram a importância do mundo interno dos bebés, a influência negativa do meio e a necessidade adaptativa de estabelecer relações próximas e seguras.
Daniel Stern, psicanalista americano, chega mesmo a propor que estas relações surgem em forma de uma “dança”, semelhante à das peças de bailado coreografado: ao reportório apresentado pelo cuidador, junta-se o reportório apresentado pelo bebé, de um modo particular e único (mas semelhante entre diferentes culturas), fazendo com que o conjunto apresentado se encontre na maioria das vezes (mas nem sempre) em sintonia e perfeito envolvimento mútuo.
Aquilo que a investigação científica na área das neurociências tem demonstrado nas últimas décadas é que, através da enorme vulnerabilidade e dependência precoce na relação com o outro, os bebés demonstram, essencialmente, que se adaptam eficazmente ao meio, que resistem perante adversidades e que procuram habilmente transformar o mundo que os rodeia.
Quando nascem, têm o maior número de neurónios que alguma vez o ser humano vai ter. São seres activos ao longo de todo o desenvolvimento (mesmo durante a gravidez) na busca da relação e da interacção com os adultos, expressando uma gama variada de sentimentos e de emoções.
Os bebés são, por isso, seres preparados e competentes para a vida desde muito cedo, demonstrando preferência pela face e voz humana logo quando nascem (em particular a da mãe), reconhecendo a origem do som no primeiro mês de vida, focando a visão a 20 cm após o nascimento (a distância entre a face da mãe e do bebé durante a amamentação), sorrindo por reflexo e logo de seguida em resposta nos primeiros dois meses, demonstrando atenção por aquilo que desperta atenção no outro, detectando padrões de regularidade, avaliando as intenções do outro, entre outras capacidades únicas.
Quando o desenvolvimento decorre de um modo esperado, são de certa forma inatas as competências que os bebés apresentam e que se juntam às suas características físicas únicas (face arredondada, bochechas e olhos grandes, nariz achatado, cabeça proporcionalmente maior que o corpo).
Por outro lado, sabemos também que o desenvolvimento motor e emocional dos bebés apresenta um padrão por etapas sequenciais e maioritariamente previsíveis no tempo (desde o sentar, gatinhar, andar, falar). Seria, por isso, de supor que este processo se relacionaria sobretudo com os factores “biológicos” ou genéticos do indivíduo em oposição aos factores “ambientais” do meio.
Sabemos hoje que esta separação dicotómica é totalmente artificial, uma vez que aquilo a que chamamos biológico é também ambiental (determinados genes são activados apenas em determinadas circunstâncias do meio) e aquilo a que chamamos ambiental é também biológico (o impacto do ambiente tem uma correspondência biológica no funcionamento cerebral dos bebés, potenciando ou eliminando determinadas vias de crescimento neuronal, entre outras alterações neurobiológicas). As experiências precoces vividas pelo bebé desde a gravidez guiam, por isso, o seu processo do desenvolvimento a partir de uma base genética inicial.
Da vulnerabilidade e dependência à influência e acção sobre o meio, a primeira infância é um território profundamente contraditório ao nível do desenvolvimento, um processo fundamental de aprendizagem informal que se constrói na biologia e, também por isso, no ambiente relacional.
Tudo o que acontece nos primeiros anos de vida fica gravado na memória dos bebés, ainda que de uma maneira implícita, o que torna esta fase particularmente sensível. Os bebés experienciam o mundo de um modo próprio e único, necessariamente diferente da dos adultos, mas sobretudo com capacidades para a adaptação e acção sobre o meio. Citando as palavras de Maria Gabriela Llansol, é este o verdadeiro “rasto de fulgor” da humanidade.