A mudança do ciclo político e o futuro da saúde
Vários estrangulamentos seriam evitados se as instituições de saúde fossem governadas de modo mais democrático e transparente. Porque são as administrações ainda nomeadas directamente pelo Governo?
2024 é um ano de mudança política, seja qual for o resultado das eleições de 10 de Março. A saúde é «apanhada» em pleno processo de transformação e muitas perguntas ficam no ar. Vejamos algumas.
Fará sentido que hospitais centrais, universitários, que têm centros de referência para doentes de todo o país em áreas como os transplantes, malformações cardíacas e tantas outras subespecialidades, funcionem como unidades locais de saúde (ULS)? E serão estas unidades a única resposta para os problemas do SNS? Claro que não. Não basta a criação de unidades locais, é preciso actuar a um nível mais concreto, pensar nas soluções de modo mais operacional.
Como garantir que os médicos de família e os médicos dos hospitais comuniquem de forma rápida e eficaz? É necessário poderem aceder aos diários clínicos uns dos outros, por exemplo. São precisas respostas que quem trabalha na saúde vai pensando e formulando. Mas para tal é necessário assegurar um envolvimento plural nas decisões do dia-a-dia, em vez de se insistir num modelo de governação vertical, de cima para baixo, que exclui a participação dos médicos, mas também dos enfermeiros, dos auxiliares e dos funcionários administrativos. É preciso não ter medo de aprender com os outros, não recear perder a autoridade ao ouvir as opiniões e as propostas de quem trabalha todos os dias nesta área.
O principal estrangulamento do SNS é o bloqueio no circuito do doente: quem vai a um centro de saúde ou USF sabe que acaba por não conseguir fazer, “a tempo e horas”, os exames mais elementares. E este atraso torna o acesso a um diagnóstico, mesmo que relativamente comum, demasiado demorado. Porque não se realizam exames complementares, como o electrocardiograma, as análises laboratoriais ou a radiografia, em todos os centros de saúde? Os médicos ganhariam ferramentas essenciais, que tornariam o seu trabalho mais estimulante, e os doentes teriam uma resposta mais rápida e eficaz, evitando muitas idas às urgências... Mas para tal é preciso reconhecer o problema e mobilizar os esforços e os investimentos necessários à sua resolução.
Mas há ainda muitos outros bloqueios. Porque não se pode enviar um pedido de consulta de especialidade de qualquer urgência do país para qualquer serviço hospitalar? Se vou de férias a Bragança e vivo em Faro, não poderá ser enviado, no serviço de urgência transmontano, um pedido de consulta para o hospital de Faro? E porque não poderá o médico de um qualquer hospital enviar um pedido de agendamento de uma consulta de medicina geral e familiar para o seu doente?
Será que todo o acesso a uma consulta de especialidade tem de passar pelo médico de família, ou haverá casos em que um simples email poderia bastar para confirmar um pedido de consulta? E porque se continua a usar as linhas telefónicas gerais, e a ter de esperar longamente ao som de mensagens pré-gravadas, quando é necessário falar com um médico noutra urgência hospitalar para transferir um doente? Muitas vezes, é preciso recorrer a contactos telefónicos pessoais para evitar mais esperas, o que nem sempre é possível ou desejável. Já alguém se preocupou com estes problemas ou calculou quantas horas de trabalho eles custam diariamente? E a propósito de tempo, quanto se perde a aguardar por estacionamento nos hospitais em Portugal? Seria interessante fazer essas contas.
Vários estrangulamentos seriam evitados se as instituições de saúde fossem governadas de modo mais democrático, transparente e participado. Porque continuam as administrações a ser nomeadas directamente pelo Governo? Porque não são eleitas mediante uma candidatura própria, votada numa assembleia de representantes? E, já agora, porque não existe um parlamento em cada hospital ou ULS? Em caso de bloqueio, poderia sempre recorrer-se à nomeação directa, mas porque se insiste de forma tão cega num modelo top-down? E porque não são votados os orçamentos dos hospitais e dos centros de saúde? Que falta faz saber o que está ou não orçamentado! Quantas vezes se ouve falar em obras aqui e ali, no serviço A ou B, prometidas mas nunca concretizadas...
Falar disto é falar do essencial. É alertar para tudo o que diz respeito ao trabalho médico e aos meios indispensáveis para assegurá-lo no Serviço Nacional de Saúde. É recordar o respeito e a transparência que são devidos a todos os profissionais de saúde, e que vão muito além de questões salariais. A meu ver, não há dinheiro que chegue para compensar a enorme insatisfação a que hoje se assiste. Tomemos atenção, porque os médicos mais novos também vêem televisão e lêem jornais. Será por isso que fogem?